Entrevista a Miss Lava.
Foto: André Cardoso

O stoner/doom nacional tem conhecido uma franca expansão nos últimos anos, com uma quantidade apreciável de bandas e de eventos dedicados, dos quais se destacam o Sonic Blast, o Reverence Fest e, se quisermos, o Amplifest. É o ninho ideal para jovens projectos. Os lisboetas Miss Lava não são, no entanto, um produto desta confluência. Com década e meia de actividade, foram mais os percursores da abordagem psicadélica ao stoner rock. E, contudo, com cinco títulos no catálogo, entre EP e LP, com um currículo invejável a nível de concertos, com actuações em locais míticos como o Whisky a Go-Go em Los Angeles e com palcos partilhados com bandas como Queens of the Stone Age, Graveyard, Kyuss Lives! ou Fu Manchu, os Miss Lava dificilmente têm um episódio mais intenso na sua carreira do que o novo álbum “Doom Machine”. Mas já lá vamos.

«Neste disco não houve mesmo qualquer tipo de regra», diz o guitarrista K. Raffah em conversa via Zoom com a Metal Hammer Portugal, explicando como “Doom Machine” tomou forma. «O que aconteceu foi que o nosso tempo era muito contado para ensaiar», continua. «Quando saiu o “Sonic Debris”, o Ruca [J. Garcia, baterista] foi logo pai, o que fez com que ele estivesse mais tempo em casa, porque já tinha outro filho, que também era muito novo. Depois a minha esposa ficou grávida, a namorada do Ricardo também ficou grávida na altura e o Johnny começou a trabalhar mais em Angola. Ou seja, tínhamos temporadas de ensaios on, mais intensas, e depois temporadas também off. E o Ricardo [Espinha, produtor] sugeriu começarmos a fazer as coisas mais à base de jams. Ou seja, não foi mesmo nada pensado. O que acabou por acontecer neste disco em termos de composição foi: nós irmos para lá, jamávamos e gravávamos as jams todas. Depois, a maior parte das jams mais fortes, quase num processo de selecção natural, foi sendo depurada e transformou-se em músicas que vieram a fazer parte do disco.» Naturalmente, foi gravado em modo ao vivo em estúdio, uma oposição ao processo normal em que os instrumentos são captados de forma individual. A primeira vez que os Miss Lava enveredaram por uma gravação assim. «Tentamos sempre trazer algo novo ao processo, tentamos sempre ter algum desafio», reflecte Raffah. «No primeiro disco, por exemplo, foi a nossa vontade de querer ir lá para fora misturar [o álbum]. No segundo quisemos atirar-nos ainda mais para fora de pé nesse aspecto e fomos para os EUA. No terceiro álbum foi a lógica da composição misturada, de toda a gente participar no processo de criação – o que aconteceu também neste. E neste, as músicas foram obviamente surgindo emjam. E pareceu-nos que era um desafio que ainda não tínhamos feito, como também fazia sentido, fruto do que estávamos a compor, para dar corpo às músicas.» O vocalista Johnny Lee encontra ainda outro motivo para este método de gravação: «Sentíamos que nos outros discos, muitas vezes, o som parecia muito produzido, faltava-nos um toque mais orgânico, e isso era uma coisa que queríamos também explorar um pouco mais. Ter um bocadinho mais de identidade nas gravações, não ser uma coisa tão polida. Acho que isso era também um desafio.»

Este amor dos Miss Lava pelo palco é algo inegável. Os concertos do colectivo são explosões de energia épica e hipnotismo, e a empatia entre público e banda é das maiores que se pode encontrar no nosso país. O que nos leva a uma questão inevitável: será que os Miss Lava compõem discos a pensar nos concertos, usando toda a experiência de palco para escreverem aquilo que sabem que funcionará bem ao vivo? Ou pensam exclusivamente em fazer um bom disco? O baixista Ricardo Ferreira acha que «é um pouco das duas coisas». E justifica: «Temos sempre um par de músicas que sabemos que as pessoas querem ouvir, seja onde for, mas também, obviamente, que é aquilo que estamos a ensaiar mais, ou que está mais fresco, que nos inspira mais. E é aquilo que não vamos querer deixar de fora nos sets ao vivo. Tocámos ao vivo algumas músicas deste disco antes sequer de estarem acabadas e isso deu-nos a adrenalina para percebermos como esse material seria recebido, para vermos como nos sentíamos naquele dia a tocar aquilo. Daí eu dizer que é um bocadinho das duas coisas. Juntamos a experiência de sabermos o que pode funcionar mais com a inspiração do momento.» Johnny Lee é, no entanto, um pouco mais radical. «Posso dizer-te que antes de gravar um disco não penso em nada disso. Não estou nada preocupado se funciona ao vivo ou se não funciona. Quando estamos a gravar ou a escrever um disco, só estou preocupado com a música e o que ela me está a transmitir. Não penso muito se vai funcionar ou se estou a escrever música para dar continuação a qualquer coisa. Sigo o momento, só.» E será que os Miss Lava de 2012, por exemplo, conseguiriam escrever, gravar e tocar um disco com a densidade emocional e energia de “Doom Machine”? Johnny Lee, apesar de considerar que em termos técnicos «não há nada que esteja lá que não seja reproduzível – claro que há sempre umas dobragens ou uns coros, mas acho que mal ou bem dá sempre para tocar ao vivo» – e que conseguem tocar ao vivo todos os discos, acaba por admitir que, em termos criativos «se calhar não». Porquê? «Porque em 2012 também tínhamos o Samuel [Rebelo, ex-baixista], que contribuía muito para para a composição. E havia muita coisa que nós trazíamos e que o Samuel na altura vetava e, portanto, provavelmente nessa altura, nesse aspecto, não seria possível.»

K. Raffah, contudo, prefere encarar este desafio de outra perspectiva. «Acho estes exercícios giros, mas partem de uma base muito técnica e de experiência. Estas músicas, tecnicamente, podiam ter sido gravadas pelos Miss Lava em 2012, mas os Miss Lava em 2012 nunca fariam estas músicas. Porque a maturidade que atingimos também foi enquanto grupo de amigos, ou grupo de trabalho, que tem uma outra densidade emocional. O que está emocionalmente reflectido neste disco é uma coisa que Missa Lava, até aqui, ainda não tinha conseguido reflectir. Se eu quisesse tentar marcar uma grande diferença daquilo que a banda tem feito até agora, para este disco, acho que é essa densidade emocional que este álbum traz e que eu acredito que passámos para as músicas. No passado, apesar de, obviamente, as canções terem pensamentos e emoções associados, não eram tão fortes como as que estão aqui neste trabalho todo. E principalmente duas músicas – a “The Fall” e a “Alpha” – nunca aconteceriam. Apesar de já termos tido outras faixas desse género, no primeiro EP tínhamos a “The Line”, no primeiro álbum tínhamos a “Scorpio” e por aí fora. Todos os discos tinham músicas assim um bocadinho mais… [interrompe] Chamaste-lhe épicas, e pode ser essa a descrição se quisermos, mas nenhuma delas tem a carga emocional que tem “The Fall” e a fragilidade e densidade emocionais que tem “Alpha”. Acho que a grande diferença passa por aí.»

O guitarrista sabe do que fala quando se refere à densidade emocional de “Doom Machine”. A composição do álbum ficou marcada pela tragédia familiar por ter perdido o filho com poucas semanas de vida. E uma coisa assim tem mesmo de marcar um disco. Basta ouvir a supracitada “The Fall” para quase se palpar os sentimentos investidos na faixa que, se fosse lançada numa era em que a música era ouvida em vez de consumida, seria séria candidata a hino rock nacional. «É tipo uma bomba nuclear que cai no teu núcleo familiar, só que depois tem este efeito de propagação e leva toda a gente à volta, toda a gente que sente amor por ti e por quem também sentes amor», diz-nos. «É óbvio que afectou a banda. Mas não houve nada que fizéssemos no disco que fosse pensado, do tipo: ‘Esta música vai ser para falar sobre esta nossa experiência.’ Embora a letra do João, na “The Fall”, refira mais isso. Mas como o nosso processo é quase inconsciente – basicamente entrar na sala de ensaios e tocar –, acho que isso fez ali uma ligação directa àquilo que estávamos a viver e o que estávamos a sentir nessa altura. Por isso, muitas das coisas que ouves são quase um reflexo directo dessas emoções. Mas são vivências muito díspares. Repara: quando o [meu filho] António nasceu, ele teve um mês e meio de vida, esteve cinco semanas internado no hospital de Cascais. Na terceira semana, o Ricardo entra com a namorada para ser pai da Luísa e estivemos juntos no hospital. Este disco também não deixa de reflectir isso: reflecte a tragédia e obviamente reflecte a morte, mas também reflecte a beleza da vida, que aconteceu com o Cuca, com a filha que ele teve logo a seguir a sair o “Sonic Debris”, acontece com o Ricardo e com o nascimento da Luísa, acontece-me a mim com o nascimento do António, que me traz muita luz e acontece depois também com o João. Ou seja, tudo isto acaba por estar ali reflectido. Agora, quando me perguntascomo é que isso se reflecte no disco, acho demasiado complexo para conseguir explicar numa frase. Nunca sentimos nada tão profundo, e como estávamos a meio do processo de composição era impossível isso não passar para as músicas, não passar para um determinadoriffou para algum ambiente que criámos em conjunto. Ouço a “The Fall” e é muito difícil para mim às vezes, porque estou sempre a lembrar-me de várias situações específicas e tenho um misto de emoções. Mas, por exemplo, sempre que chego àquela parte final em que a coisa fica assim mais hipnótica, aquilo para mim representa um estado de paz, um deixar ir em paz. Claro que não foi pensado, mas apareceu ali e reflecte isso. Ou pelo menos a minha interpretação é essa. Agora, é óbvio que o impacto que teve neles há-de ter sido ligeiramente diferente do que foi para mim.» Johnny Lee acrescenta: «Claro que isso mexeu comigo, mas na parte da escrita do disco evitei ao máximo abordar o tema de forma directa, porque, para além de ser uma situação muito difícil pela qual passámos, acho que não conseguiria nunca ser fiel e justo com aquilo que se passou. A única coisa que posso fazer é pegar naquela força – obviamente que aquilo me fez pensar o que é que andamos aqui a fazer e pôr tudo em perspectiva –, tentar sacar o mais importante e direccionar a minha escrita muito nesse foco. O que andamos a fazer, a destruição que andamos a causar a nós próprios. Porque quando uma coisa destas te acontece, começas a pensar: ‘Andamos aqui preocupados com coisinhas de nada e realmente o que importa é termos amor uns para os outros.’Porque foi isso que tivemos de ter uns para os outros – amor. Isto foi uma dor muito grande. Influenciou-nos nesse aspecto, mas nunca foi um tema óbvio. Mesmo a “The Fall”, que pisca o olho ao tema – fala da superação de uma perda – não fala daquela perda específica. Há ali sempre espaço para interpretações de várias coisas.»

Johnny Lee tem muita facilidade em proferir a palavra amor. Não demais – porque nunca é demais –, mas usa-a frequentemente quando explica as letras de “Doom Machine”, ainda que a abordagem seja do ponto de vista da desilusão com o actual estado do mundo. «Acho que mais cedo ou mais tarde, a vida como nós a conhecemos vai acabar», começa. «Os níveis de poluição aumentam, a tecnologia está toda direccionada ao lucro, e dificilmente isto vai correr tudo bem. Não vai correr tudo bem. Esse ódio de que falamos tem a ver com… [interrompe] É muito fácil destruir e é muito difícil construir. E nós assistimos todos os dias a destruições irreversíveis. Basta lembrar-nos do ISIS, que destruiu monumentos com não sei quantos anosÉ absurdo aquilo a que hoje em dia assistimos, seja a nível cultural ou familiar. Hoje em dia é destruição por todo o lado. Muitas vezes encontras esta frase no Facebook: “A fé na humanidade foi restaurada.” Porque há um gajo que fez qualquer coisa. Essas acções, que realmente fazem a diferença, são cada vez mais pontuais. Enquanto houver Trumps, Bolsonaros e pessoas assim a mandar, não vai haver cortes que façam com que a poluição termine e isto vai destruir-se. É inevitável. Se calhar não é na nossa geração, se calhar não é na geração dos nossos filhos, mas na dos nossos netos acho que é muito provável que sim.» E será que, tal como nos anos 60 e 70, conseguiremos enquanto espécie dar a volta à situação e, muito através da arte, devolver a esperança à humanidade? «Tenho uma letra que fala um pouco sobre isso, que é a “The Brotherhood of Eternal Love”. Nasce precisamente com os baby boomers, a geração pós-Segunda Guerra Mundial, em que aparecem os primeiros free thinkers, em que há paz, amor e essas coisas todas», diz o vocalista. «Só que acho que o que foi construído ali não tem um legado. Hoje em dia abusamos dessa liberdade – exploramos, destruímos. De certeza que tens amigos no Facebook que já ocultaste ou já deixaste de seguir porque já não consegues ver o que escrevem. Só que pensamos que os deixamos a falar sozinhos, mas não deixamos – eles estão a ganhar cada vez mais força, estes movimentos cada vez ganham mais apoiantes e eu não vejo que haja um novo ciclo. Mesmo que haja sempre aí umas modas que às vezes pegam, duvido que vá aparecer uma moda que faça com que essas pessoas parem de dizer disparates. Os disparates vão ser cada vez maiores e cada vez vai haver mais porcaria. Honestamente, sinto isso.»

Com o disco de uma carreira na bagagem, os Miss Lava vêm-se agora a braços com uma situação complexa. Não mais complexa do que centenas de outras bandas certamente, mas com um álbum acabado de sair, como diz K. Raffah, a questão que se coloca é: «Se não dermos concertos, como é que vendemos os discos?» Ricardo explica por que é que os Miss Lava provavelmente sentem um pouco mais de saudades do palco do que qualquer outra banda. «Acho que o sentimento deve ser generalizado, mas praticamos um género de música que gosta de aquecer o sangue que corre na guelra», ri-se. «E a ausência de objectivos não nos permite ver onde está a meta, não conseguimos criar um caminho que nos dê um foco para fazer isto ou aquilo. Tivemos uma série de festivais e concertos que já estavam marcados no ano passado e que, dentro daquilo que é a regra geral, foram empurrados com a barriga para 2021 naquela esperança do ‘deixa ver’. E vamos ver. Mas para teres uma ideia, tocámos no dia 7 de Março [de 2020], se não me engano, em Évora num festival, portanto uma semana antes de haver o lockdown aqui, e o que é facto é que desde esse dia não ensaiamos. O João ficou cá, entrou em confinamento e aí ninguém fez nada, mas mesmo quando começou o pessoal a destapar um pouco a cabeça, a partir de Maio e por aí fora até Setembro, nós não ensaiámos. Juntámo-nos para beber uns copos e para falarmos – quase para respirarmos e nos vermos –, mas não para ensaiar. Obviamente, a ausência de objectivos e dessa meta também cria indefinição. Temos um disco novo e neste momento somos uns eruditos do disco, não somos os músicos que o tocam.»