Moonspell “Irreligious”: «O disco certo com um público preparado para experiências, para evolução»
Artigos 29 de Julho, 2020 Diogo Ferreira


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O teste do tempo
Das diversas fases e situações com as quais uma banda se depara, há dois pontos fulcrais à sua existência: o lançamento do segundo álbum e o teste do tempo. Corria o ano de 1996 e os Moonspell, já na altura – ainda que em crescimento – a maior banda portuguesa de metal, lançavam “Irreligious”, o tal segundo trabalho, e passado décadas o exame temporal está passado com distinção. «O “Irreligious” venceu a prova de fogo do segundo disco», afirma inequivocamente Fernando Ribeiro, vocalista, letrista e um dos fundadores da banda. «Permitiu mostrar à editora e ao produtor que não tínhamos feito o “Wolfheart” por acaso e que resistimos ao teste das tours consecutivas e de tocar ao vivo e ainda fazer outro disco no processo.» De facto, deve apontar-se que um ano antes tinham lançado o estreante “Wolfheart”, que ainda tinha muito do black metal folclórico de lançamentos anteriores que conjugavam tanto a mitologia pagã dos celtas como sonoridades árabes. “Irreligious” «foi um disco unânime», frisa o cantor, e continua fazendo paralelo ao teste de se lançar um álbum segundanista: «O disco certo na altura certa com um público preparado para experiências, para evolução, para receber um disco diferente. Claro está, alguns fãs mais típicos de black [metal] ficaram pelo “Wolfheart”, mas foi residual.» Quanto à saturação temporal e sua resistência, Fernando Ribeiro recorda que «a aceitação do público foi impressionante» em 1996, estando “Irreligious” no top oficial alemão durante oito semanas, «e esse impacto permitiu a este disco vencer também o teste de resistência ao tempo como podemos comprovar pelos concertos, reacções e pelas edições em vinil, já muitas delas esgotadas».
«A aceitação do público foi impressionante.»
Fernando Ribeiro sobre “Irreligious”
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O marco e a celebração
Todos os álbuns de uma banda serão queridos aos seus criadores cada qual à sua maneira por evidenciarem momentos de vida, crescimento artístico e intelectual, experiências ou montanhas-russas de sucesso que tanto sobem como descem repentinamente, mas ideias estas à parte, “Irreligious” será sempre o espelho de duas conquistas essenciais para os Moonspell, como F. Ribeiro explica: «A primeira é que nos permitiu, musical e liricamente, fazer um disco mais de banda em vez de um disco pulverizado e reconstruido por todas as vontades e sensibilidades dentro da banda. Ou seja, trouxe-nos uma característica mais Moonspell e permitiu construir uma base musical, uma matriz que podia ser desenvolvida com fusões, experiências, etc.. Também marcou o metal gótico na altura, pois era um disco que fundia concretamente essas tendências. Em segundo lugar, permitiu-nos a independência e começar a viver da música. Era uma altura complicada para nós, entre tours e viver em casa dos pais. Só as vendas, as tours infindáveis e o impacto deste disco nos fez crescer como homens e começar a nossa vida adulta, já músicos.» Continuamente, e tendo em conta toda a celebração à volta do álbum, o músico remata: «Resta-nos a nós dignificar este repertório e a sua importância para os nossos fãs, entrando também nós num espírito, essencialmente em concertos, que foi magnífico para a nossa música e que ainda está vivo, embora sob outras expressões e contextos.» Esse espírito de irmandade, recordação e eco esvoaçou então pelas actuações comemorativas que originalmente «começaram com a vontade da [ex-editora da banda] Century Media em relançar o disco em vinil», e «daí foi uma consequência lógica de tudo o que aconteceu com os promotores a quererem concertos de celebração e muita gente a querer ver-nos pela primeira vez na vida ou passados longos, mas rápidos, vinte anos».
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“Wolfheart” versus “Irreligious”
“Wolfheart”, de 1995, foi um acontecimento importante para os Moonspell, para o público metálico português e até, porque não?, para a Century Media. Ainda hoje, esse primeiro longa-duração é considerado uma obra-prima além-fronteiras, mas, e como prova a comemoração, “Irreligious” contém em si uma grande falange de fãs que o põe no topo da já larga discografia do grupo. «Penso que os fãs de “Wolfheart” são mais comprometidos com o estilo, enquanto o “Irreligious” chegou a outras pessoas que vinham de outros estilos e vivências que não só o metal underground», compara. Verdade seja dita, as diferenças entre o primeiro e o segundo álbum são muitas, havendo distinções significativas entre ambos quanto ao conceito lírico, tempos menos velozes e criação de riffs menos rasgados. «O “Wolfheart” é um disco de culto para uma camada menor, mas mais intensa de fãs. O “Irreligious”, mais homogéneo, menos específico a cada natureza da banda, foi um disco congregador mas que, já na altura, dividiu uma parte do nosso público. Em todo o caso, quando falamos com os fãs, com tantos discos e histórias que já aconteceram, tudo isto se dilui e ganha-se o gosto pela banda e todo o seu repertório.»
As letras, muitas vezes em comunhão com a música, sempre foram para muito subversivas e provocadoras, desde logo em “Wolfheart” passando por “Sin/Pecado”, ainda que depois também haja algum horror/suspense como, por exemplo, em “The Antidote”, mas Fernando Ribeiro é cauteloso: «Tenho sempre a necessidade de nos colocar em contexto. Comparativamente a grande parte do mundo de metal, as nossas letras não serão subversivas. Aliás, na minha opinião, o subversivo é todo uma questão de perspectiva, por isso não fico nem ofendido, nem me sinto orgulhoso em subverter ou o seu contrário.» Para o artista, «as letras são, sim, fruto de pesquisa, expressão, storytelling, mitologia, vivências e convicções», mas não deixa de exibir um sinal vermelho à normalidade e conformidade que melhor alcança a audiência de massas: «Se, por outro lado, se comparar à expressão lírica de outros artistas em Portugal, é ‘fácil’ ser subversivo mesmo que não seja intencional. A maior parte das letras é inofensiva, sobre eléctricos, Lisboa linda, escola secundária, praia. Resta-nos os poetas e as bandas de hardcore, que ainda cantam para provocar a emoção.» Enquanto «“Wolfheart” versava todo um mundo, uma energia pagã», «“Irreligious” cantou mais sobre coisas como o mito Faustiano [“Mephisto”], a expansão da mente poética através das substâncias [“Opium”], a comunidade lunar», o que para o escritor «são elementos clássicos da formação enquanto letrista». No entanto, e como é apanágio de artistas desobstruídos que não engolem para si a ilusão da verdade absoluta, Fernando Ribeiro crê que a «leitura cabe a quem lê, assim como encaixar [as letras] nas suas referências», e em mais um exercício de liberdade conclui: «Há quem abomine o nosso conteúdo lírico. Há quem adore. E ninguém é mais ou menos subversivo por isso. Quem for inspirado a ler e a fazer as suas próprias análises, isso é, na minha opinião, virtuoso.»
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Quorthon e Bathory
A sonoridade dos Moonspell foi evoluindo para outros campos fora do black metal logo em “Irreligious” e, ainda que haja muito revivalismo em “Memorial” (2006), “Extinct” (2015) é uma prova da criatividade musical de uma banda que soube ultrapassar as fronteiras dogmáticas do black metal ao longo dos tempos, acabando talvez por se produzir algum vazio com a perda de seguidores da velha-guarda, mas certamente garantido novos e energizados apoiantes noutros quadrantes. Saberão os maiores conhecedores da biografia do colectivo que Quorthon é para Fernando Ribeiro uma grande influência, como o próprio relembra: «O encontro com o Quorthon em Almada e Lisboa, em 1990, foi decisivo para mim e para quem fundou os Morbid God, depois Moonspell», havendo até imagens em vídeo dessa ocasião. «Nós já éramos fãs da banda, os maiores fãs», salienta o compositor, na altura mais conhecido por Langsuyar, «e daí a visita dele a Portugal, porque sentia que havia aqui um apoio invulgar num país tão pequeno e periférico. Muito dele era nosso, dos fãs da Brandoa». Desse momento à sala de ensaio e à criação de algo singular e diferente em Portugal foi um tiro: «A conversa que mantivemos com ele inspirou-nos no dia a seguir a pegarmos no nosso pouco talento, nos nossos instrumentos de terceira categoria e tentar fazer coisas, ser como o Quorthon e os Bathory, que, na altura, também mudavam o seu som para algo ainda mais único e especial.» Mas será possível que, álbum após álbum, os fãs tenham vindo a esquecer de onde realmente vêm os Moonspell? «Nunca pensei nisso, sei que o público é rápido a esquecer e que um dos trabalhos de Moonspell é fazer com que estejamos no radar. Agora se sabem de onde vimos ou não… Normalmente, o nosso passado é utilizado como crítica moralista da cena metal, mas essas pessoas esquecem-se que eu estava lá, eles não.»
«Tentámos mas não conseguimos. Os brutos também amam.»
Fernando Ribeiro sobre uma vida sem Moonspell
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Lobos que são Homens
«Acho que nunca fomos tão lobos quanto agora», responde Fernando Ribeiro quando questionado que lobos são os Moonspell agora, mais de vinte anos depois de “Irreligious”. Pegando no título da icónica “Full Moon Madness”, o conceito da banda sempre teve aquela imagética feroz entre os lobos e a Lua, apesar de mais tarde terem seguido para outras temáticas como o destino da Terra ou a extinção, duas coisas que acabam por ligar-se à própria luta natural desses animais selvagens que sobrevivem em conjunto, protegendo sempre o seu território: «Penso que, no início, tínhamos o conceito e a vontade, mas o entendimento só veio com a experiência e a vivência, e agora somos uma família de lobos, uma alcateia que sabe defender a sua independência, fazer cedências e atacar de frente quando é caso disso. Acho que a metáfora e o modo de vida dos lobos sempre nos inspirou, e esses primeiros passos, muitas vezes ingénuos mas visando a sobrevivência da banda, foram vitais para estarmos aqui hoje, e sermos independentes como homens e músicos.» Ao longo deste artigo já se percebeu quão intensa foi a contenda pela ascensão musical e humana, mas, como com qualquer entidade, individual ou colectiva, há sempre um confronto de ideias, utilizando nós a expressão ‘intelectualismos bacocos’ para materializar o que vem de fora para dentro da banda, levando Ribeiro a contrapor que «intelectualismos são sempre bacocos, até os nossos», mas sem depois querer esquecer o último fait divers que envolveu Vítor Belanciano, do jornal Público, e a sua paixão por Buraka Som Sistema: «O que não se suporta é venderem opiniões por factos, mostrarem claramente as suas preferências em situações que não são de opinião e, finalmente, moralizar o que me irrita profundamente, pois de uma coisa estou certo: ninguém é mais virtuoso que o próximo.»
Sempre foram muito activos nas redes sociais e muitas pessoas, até mesmo fãs, acabam por fazer comentários sem esperar que haja resposta, imaginando talvez que Ribeiro & Cia. estejam ocupados no seu mundo de estrelato. Acerca disto, o artista português assegura que tentam «proteger ao máximo [a página de Moonspell] de questões não musicais» e tentam sempre que as suas publicações «estejam relacionadas com música», mas pessoalmente as coisas mudam de figura: «Quanto a mim, eu tenho opiniões como toda a gente e gosto de as partilhar, mas tenho-me adaptado e filtrado assuntos e tentado encontrar aquilo que realmente me motiva na escrita.» Mas retomando a questão sobre o sucesso que a banda obteve nacional e internacionalmente, F. Ribeiro é peremptório: «Sempre achei sucesso uma perspectiva. Nós temos uma noção de que o importante é fazer a nossa parte. Não somos nós que enchemos as salas, é o público. A nossa parte é a sedução e acto.» Tem sido assim há mais 30 anos e já têm muitos quilómetros percorridos, passaram por adversidades e souberam vencê-las sem nunca, imagine-se bem, terem que prestar grandes contas e justificações ao exterior da alcateia. E uma vida sem Moonspell? Fernando Ribeiro encerra poeticamente: «Tentámos mas não conseguimos. Os brutos também amam.»
(in revista Ultraje #8, Jan/Fev 2017)

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