Os Lamb Of God estão de volta com um novo álbum. E ainda lutam por um mundo melhor, um berro de cada vez.

Os Lamb Of God estão de volta com um novo álbum. E ainda lutam por um mundo melhor, um berro de cada vez.

Foto: Nick Fancher

«Já ouviste falar de zonas autónomas temporárias?» Pergunta Randy Blythe quando nos sentamos numa sala silenciosa no andar de cima da Biblioteca Pública de Richmond. Momentos antes, a Hammer tinha feito um comentário sobre as paredes avermelhadas que pareciam uma sala de interrogatório. Com uma gargalhada amarga, respondeu: «Já estive em salas de interrogatório. Isto é muito melhor.»

Randy não estava a brincar. Mas, como rapidamente torna claro, já não é um homem perturbado. Como vocalista de uma das maiores bandas de heavy metal do mundo, um fotógrafo talentoso, um autor de best-sellers e um infeliz antigo convidado do sistema prisional checo, o vocalista dos Lamb Of God viveu e viu muito. Em vez disso, a dois quarteirões de distância de um restaurante gorduroso onde trabalhou nos seus salad days do punk rock, Randy refastela-se numa dura cadeira da biblioteca enquanto expõe uma teoria do controverso estudioso anarquista Hakim Bey.

Uma ‘zona autónoma temporária’ descreve um período efémero de liberdade revolucionária experimentada fora das estruturas do controlo estatal. Como Randy explica, é aí que vê a solução mais viável para a sua própria felicidade pessoal – e a melhor experiência no heavy metal.

«Ao longo da História, onde as pessoas se juntam e vão, [onde] ‘não há regras, vamos dar-nos bem’, aparece sempre alguém e dá cabo disso», diz. «Portanto, desfrute-se esse tipo de liberdade naquele momento, porque esse momento é tudo o que realmente existe. Sinto que um bom concerto demonstra os melhores aspectos disso. Existem problemas, mas acho que cabe à comunidade policiar-se. O grupo tende a lidar com isso de maneira unificada, e estão todos juntos e livres.»

Esse é o sentimento que fez com que Randy continuasse em frente nos últimos 26 anos de existência da banda [N.d.T.: contando com Burn the Priest]. Detesta gravar e, quando o visitámos, e aos seus colegas, no set de gravação do videoclipe de “Memento Mori”, parecia-nos miserável. Certamente, o facto de aquilo estar a acontecer num armazém gelado não ajudou, mas, mesmo na melhor das hipóteses, Randy nunca se importou muito com as armadilhas do seu trabalho. Vive para tocar ao vivo e, ao contrário de alguns dos seus colegas, até gosta das horas passadas em viagem, bem como saber que a música que fazem anda por aí a ajudar pessoas a passarem mais um dia.

«Fazer discos não é divertido para mim, pelo menos não com Lamb Of God. Já fiz outros projectos com os quais me diverti mais porque não estava apenas aos berros», explica. «Gostava que pudéssemos gravar [em modo] ao vivo, com toda a gente lá enfiada, porque existe uma energia que surge quando nos reunimos e que não se consegue quando estás a ouvir o que gravaram através dos auscultadores.»

«É por isso que os meus auscultadores têm de estar altos. Há vários discos que estava com problemas em conseguir fazer com a minha garganta o que faço em palco, sempre foi um problema, e o nosso produtor finalmente teve uma ideia: colocou um filtro digital na faixa vocal que eu ouvia nos auscultadores enquanto cantava, que soava a um PA de merda, que era o que eu estava habituado há anos. Assim, de repente, a minha voz ficou: ‘Ok, sabemos como fazer isto!’ De alguma forma, a minha audição não está totalmente destruída.»

O novo álbum homónimo é o primeiro em cinco anos e o mundo é um lugar muito diferente desde o último lançamento. Também não são a mesma banda. Este disco é o primeiro com o novo baterista Art Cruz, de 31 anos, natural de Los Angeles, com uma onda extremamente descontraída, um currículo à prova de bala (também tocou com Prong e Winds Of Plague) e um carinho por Carlos Santana. Art juntou-se à banda após a partida do baterista/fundador Chris Adler em 2019, e tem um lugar intimidante para preencher no kit, mas Randy diz que já se encaixou bem e trouxe uma perspectiva de fã para o novo álbum. «Éramos a sua banda favorita quando ele estava no ensino secundário, é de loucos!», exclama. «É muito porreiro tê-lo na banda porque somos amigos há uns tempos. Conhecemo-lo desde sempre, ele costumava andar no autocarro connosco.»

Os fãs de longa-data de Lamb Of God ficarão empolgados com o novo material, que é tão visceral e esmagador como qualquer outra coisa no seu catálogo de classe mundial, e apresenta aparições temíveis de Jamey Jasta (“Poison Dream”) e Chuck Billy (“Routes”). Quem ler as letras também reconhecerá o compromisso contínuo da banda com os mesmos princípios que mantêm desde que puniam o antigo presidente dos EUA, o belicista George W. Bush, em “Ashes Of The Wake” de 2003.

Randy está farto do sistema político dos EUA na sua totalidade. É um sentimento que não será um choque para quem seguiu a sua carreira ou ouviu a sua música, mas, com 2020 a transformar-se num caos verdadeiramente alarmante, é difícil culpá-lo – especialmente quando governantes tratam questões de vida ou de morte como um jogo de cálculo político. Não há nada especificamente direccionado a Trump, que Randy descarta como «um cleptocrata sem vergonha» – os Lamb Of God preferem esmurrar o sistema cruel do qual ele é um peão. Capitalismo é a doença, Trump, com a sua agenda autoritária sanguinária, é o sintoma.

«O sistema está podre, não funciona», diz com uma gargalhada pesarosa. «E as pessoas que se identificam tão fortemente como democratas e republicanos estão entrincheiradas – exactamente como o nosso Congresso –; ninguém está disposto a colocar-se particularmente no meio, porque agora isto é como equipas desportivas. Há uma série de pessoas que gasta o dinheiro todo e apoia uma equipa, e há milhares de adeptos de um lado e milhares de adeptos do outro, e apenas algumas pessoas são pagas. Os membros da equipa recebem algum dinheiro e, de seguida, os proprietários ficam realmente ricos – o nosso sistema é assim. Não é novidade, é apenas mais flagrante e óbvio.»

Uma nova remessa de jovens brilhantes e anti-sistema e bandas de esquerda veio à tona nos últimos anos desde o último disco de LOG – de Power Trip a Dawn Ray’d –, mas deixam claro que estes OGs [N.d.T.: old gangsters] ainda têm muito para dizer – e querem que a mensagem persista por vários ciclos eleitorais presidenciais dos EUA. «Já toda a gente sabe que eu não gosto de Trump. Eu disse-o antes de ele ser eleito, portanto por que raio havia eu de escrever um disco a cascar em Trump?», explica. «A situação é tão ridícula e inconstante que não há nada que se destaque – não dá para escolher um tópico para explorar. Todo o disco é um retrato de onde estamos nos países chamados ‘desenvolvidos’ no mundo ocidental, e o que vejo como raiz disso.»

Na opinião de Randy, a culpa é do consumismo desenfreado que exerceu influência sobre a cultura ocidental desde o início da Revolução Industrial e a ascensão da classe média. «Não estou a dizer que era óptimo quando havia ricos e o resto eram camponeses a viver num saco de serapilheira, mas as coisas mudaram», diz. «Em qualquer sociedade em que a auto-estima ou a felicidade é determinada pelos bens que possuis, estás lixado, porque quando morres, acaba tudo. [O empreendedor americano] Malcolm Forbes costumava dizer que ‘quem morre com mais brinquedos, vence’, e eu fico: ‘Ganhas o quê?’ Morres com um monte de porcaria? O que importa? Podes morrer feliz com o suficiente para sobreviver, as pessoas fazem isso a toda a hora.»

Randy quase que lamenta quando abordamos política, mas tem pronta uma resposta ponderada, muitas vezes profana, para cada pergunta. A sua visão anticapitalista foi moldada pelo punk rock, que lhe deu vantagem sobre muitos metaleiros da sua geração – enquanto o pessoal do metal dos anos 1980 discutia as distinções do género, Randy e os seus amigos do punk estavam ocupados a expulsar nazis de concertos locais.

«Actualmente, a comunidade metal, como existe, deve muito ao mundo do punk rock – tudo o que é divertido, todas as rotas das digressões, tudo remonta aos esforços DIY [N.d.T.: do it yourself, faz tu mesmo] dos Black Flag e de todas aquelas bandas iniciais», diz. «Durante anos, resisti a dizer que éramos uma banda de metal, porque, quando aparecemos, éramos mais influenciados pelo grind com ligações à cena punk. Tocávamos em armazéns e casas ocupadas, principalmente no oeste de Filadélfia, com várias bandas de punk rock. Esse é o mundo de onde eu venho.»

Apesar do seu pedigree punk, Randy não se identifica como anarquista («parece-me bastante utópico»). As suas tendências políticas viram definitivamente para a esquerda, e o debate actual na comunidade metal sobre se o género deve ou não ser ‘político’ fá-lo trepar paredes.

«Quando as pessoas dizem, ‘não discutas política, fica-te pela guitarra’, é do tipo, ‘idiota do caralho, não sabes nada sobre a história da música?’», diz sem um rasto de incredulidade. «Não apenas punk e metal, mas música em geral. Leiam algumas letras de Black Sabbath, seus idiotas! Às vezes, só quero relaxar e ouvir Cannibal Corpse e beber uma cerveja sem álcool, e tudo bem, há um momento para isso, mas se quiseres algo que seja apenas entretenimento e que não tenha peso, mensagem ou significado, ouve o Top 40. Ouve algo sobre nada. Não ouças o nosso tipo de música. Que se fodam.»

A biblioteca fica ao virar da esquina da moradia do governador da Virgínia, um edifício imponente onde Randy e o guitarrista Mark Morton já trabalharam como reparadores de telhados, e a alguns quarteirões do Capitólio de Estado. Várias semanas antes da nossa conversa, o perímetro do Capitólio tinha sido inundado por um fortemente armado grupo de defensores dos direitos das armas e extremistas de direita enfurecidos pelas tentativas do governador em aprovar nova legislação sobre o controlo de armas. Randy perdeu o protesto (estava em viagem), mas diz que de outra forma estaria presente a documentar o espetáculo.

Também estava fora da cidade durante o mortal comício neonazi Unite The Right, em 2017, em Charlottesville, mas emprestou uma câmara a um amigo próximo para usá-la naquele dia. «Quando ele se meteu num beco para ver as fotografia, ouviu um som de aceleração», lembra. «Ele olhou e viu o carro a atravessar a multidão e a matar Heather Heyer.»

Eu estava lá naquele dia e testemunhei a carnificina. Pareceu que um pilar da sociedade americana estava a ruir e que os estragos não diminuíam – só pioraram. Mas Randy (que nasceu em Maryland e dividiu os seus anos de formação entre Virgínia e Carolina do Norte) quis deixar claro que acontecimentos como este não são um reflexo da sua cidade natal adoptiva, uma pequena localidade boémia mais conhecida pela sua cena artística universitária e underground do que política.

«Para ser justo com a grande comunidade da Virgínia, o comício das armas foi promovido pela insana extrema direita, pessoas doidas espalharam todo o tipo de informação errada na Internet, tentando que as coisas ficassem más por aqui», explica. «Milhares de pessoas vieram de fora do Estado com armas. Foi de doidos.»

Apesar das evidências em contrário, Randy jura que não é sério a tempo inteiro. Ri muito e, quando sai do heavy metal, faz surf, vai a concertos e passa tempo com a família. Regressou recentemente de uma viagem de surf num local não-revelado na América do Sul, onde passou um mês fora da rede. Valoriza a sua autonomia e a sua capacidade de entrar e sair do radar do público. Randy é um nome familiar no metal há décadas, mas dá-nos a impressão de que ainda não está habituado à atenção. Embora os fãs possam discordar, ainda se refere a si próprio como um budget rockstar e, mesmo com os dreads grisalhos escondidos por um boné e óculos que obscurecem as suas feições afiadas, é frequentemente reconhecido na cidade.

«Sim, sou muito reconhecido e faço coisas porreiras, mas ainda não sou milionário, vivo uma vida normal, conduzo um carro usado», diz. «Sou reconhecido mais nas ruas de Los Angeles e Londres, e as pessoas ficam mais empolgadas. Aqui, as pessoas sabem quem somos e pensam: ‘Ah, lá vai o gajo de Lamb Of God, acho que lavou pratos num bar onde eu ia’, porque é verdade. Só me incomoda mesmo quando estou a comer ou quando estou com a minha esposa ou a minha mãe. Se alguém aparece a dizer ‘I fuckin’ love your band!’, eu respondo, ‘pá, esta é a minha mãe – não largo a f-bomb ao pé dela! Isto não é um concerto de metal, estamos numa loja de calçado, por favor, acalma-te’. Sou um ser humano normal e, como tal, mereço esse nível de respeito. Só porque estou numa banda que gostas, isso não significa que deves gritar ‘foda-se’ ao pé da minha mãe!»

As vantagens são difíceis de discutir, no mínimo. Conta-nos uma história sobre quando tocaram no Hellfest, em 2019, e os ícones do rock sulista Lynyrd Skynyrd tocavam mesmo antes deles. Randy plantou-se ao lado do palco enquanto eles se enrolavam numa versão longa de “Free Bird”, e cantava.

«E depois nós tocámos, e havia 70.000 pessoas a passarem-se, e pensei: ‘Que caralho, os Lynyrd Skynyrd acabaram de abrir para mim e estamos em França – isto é muito estranho! Como é que isto aconteceu comigo?’», diz. «Estamos mesmo na Second St. and Grace, e eu costumava cozinhar num restaurante ao virar da esquina a noite toda, das 11 da noite às 7 da manhã, e vivia como um vampiro sem dinheiro. Não é como se tivéssemos aquele momento em que BOOM, estamos em digressão com Metallica e a ganhar dinheiro, tem sido uma inclinação ascendente muito gradual, e, portanto, não parece tão estranho na maioria das vezes. Mas têm-se aqueles momentos em que se pensa: ‘Isto é porreiro como o caraças, mas é muita loucura. É esta a minha vida?’»

Quer esteja a partir tudo em palco, a documentar o mundo através duma lente ou apenas a conversar com os amigos de Richmond, a única certeza real que existe no futuro de Randy é que continuará a falar sobre o que é correcto, a divulgar o evangelho político do punk e a fazer a sua parte para tornar o nosso mundo um pouco melhor.

«O meu pai e a minha mãe – não concordamos com tudo, mas ensinaram-me o certo do errado», diz. «Nem sempre fiz as coisas certas, mas sempre me senti culpado. E continuo a não fazer tudo bem. Sou um ser humano, mas estou a dar o meu melhor, caraças. Sou um homem velho, abatido e cansado, mas estou a tentar.»

(Texto: Kim Kelly)
(Consultar artigo original em inglês)