Chelsea Wolfe “Birth Of Violence”
Reviews 12 de Setembro, 2019 João Correia

Editora: Sargent House
Data de lançamento: 13.09.2019
Género: americana / folk
Nota: 4.5/5
A primeira audição de “Birth Of Violence” proporciona uma sensação simultânea de erro e incredulidade – de erro porque que nos leva a verificar se nos enganámos no disco e de incredulidade quando percebemos que não. Figura central da música independente, muito por virtude das suas constantes digressões e apresentações um pouco por todo o mundo, com “Birth Of Violence”, Chelsea Wolfe aponta a bússola em direcção a casa, à sua casa, aos Estados Unidos da América e a tudo o que isso implica. Esqueçam tudo o que ouviram anteriormente da californiana e eliminem quaisquer expectativas de experimentalismo, noise, metal e peso – “Birth Of Violence” é um disco de música folk. Com pepitas mais densas, verdade, mas folk.
“Ah, mas ela já tem um álbum folk!”, poderão dizer os fãs mais impetuosos e conhecedores da obra de Wolfe. Não. Quanto muito, “Unknown Rooms” (2012) é um disco acústico, mas “Birth of Violence” é, de facto, o álbum folk por excelência da cantautora. Por um lado, “Birth Of Violence” vai buscar água ao poço profundo da tradição musical norte-americana e, por outro, à América nostálgica de final dos anos 1950 e de toda a década de 1960. Musicalmente, neste disco não é descabido compará-la a Bob Dylan ou Nick Cave, com as devidas ressalvas; literariamente, seria impossível desassociá-la de nomes como Kerouac ou Ginsberg, tal é a inconformidade e a criatividade espontânea de Wolfe, essas que tão bem representavam a geração Beat.
Depois, há a omnipresente estrada: o traço contínuo a perder de vista das autoestradas norte-americanas, os quase quatro mil quilómetros que separam Nova Iorque de Los Angeles e tudo o que existe entre as duas cidades, os pores-do-sol nas vastas extensões de deserto, o céu amplo maior do que o mundo, a passagem por pequenas cidades rurais que encerram a verdadeira América profunda… Todo um caminho que a artista percorre para chegar a casa, para descansar das dezenas e dezenas de milhares de quilómetros percorridos entre concertos nacionais e ultramarinos, e pensar naquilo que realmente importa – o apego ao aconchego do lar, portanto, num local secluso do norte da Califórnia.
Nem de propósito, o tema inicial, “Mother Road”, espelha a ansiedade da artista em chegar a casa, em deixar para trás os palcos, as viagens, em dedicar-se mais a si mesma e a zelar pelo seu bem-estar. “Guess I needed something to break me, guess I needed something to shake me up”, declama Wolfe com uma melancolia inaudita na sua carreira, como se soluçasse em vez de cantar, apenas a sua voz e a sua guitarra acústica Taylor, acompanhada pelas cordas de violinos belos, mas sinistros. Já dizia Da Vinci que a simplicidade é o último grau de sofisticação. No final da música, notamos que a artista está diferente, mais madura, vivida, mas ainda não tivemos tempo de perceber que se trata do disco mais singular da sua carreira. Lá chegaremos.
Neste novo registo, a voz de Wolfe surge, agora, posicionada como instrumento principal, provavelmente devido à quase ausência de distorção e ruído em todo o álbum, fazendo com que ganhe mais relevância de forma natural. A voz fugaz de todos os discos anteriores dissipa-se por completo em “Birth Of Violence”: está bem demarcada, clara e segura, como se necessitasse de afirmar algo; o folk, o caminho que Wolfe decidiu atravessar neste longa-duração, carece obrigatoriamente de uma voz omnipresente e quase totalitária para conferir ao disco profundidade e, em última análise, para a ouvirmos como nunca antes.
Segue-se-lhe “American Darkness”, que nos presenteia com nostalgia, com a sensação de ter uma saudade inexplicável de um tempo e lugar em que nunca vivemos, de algo idealizado. Quando a música nos faz sentir isto, sabemos que estamos perante algo especial, quase espiritual. Assim, não será de estranhar se a segunda faixa, com os seus arranjos electrónicos e uma bateria lá ao fundo nos invocar nomes como Grant Wood, Norman Rockwell ou Twin Peaks, bem como tantos outros fenómenos populares pertencentes ao imaginário da Americana. É natural que soe a uma miscelânea com remendos de Radiohead, Portishead ou Broadcast, tal é a homenagem ao indietronica a que assistimos. Entretanto, reparamos que ainda só vamos na segunda música e já temos motivos suficientes para louvar “Birth Of Violence”.
Não existe grande experimentalismo no disco, mas existe dissonância. Não existe doom metal como em registos anteriores, mas permanece a sensação de desamparo e de angústia. Também não existe música gótica nele, mas o espectro de Siouxie Sioux (e por vezes de Diamanda Galás) paira sobre toda a obra. O tema epónimo retoma inicialmente a electrónica para dar vez a uma guitarra acústica que acompanha a voz pronunciada de Wolfe, apenas para regressar nos instantes que antecedem o momento do tema: a voz aguda e quase infantil de Chelsea a povoar os instantes finais dele. “I’m Deranged for Rock N’ Roll” enfatiza o cansaço da cantora (“I’m deranged for rock ‘n’ roll, Drink my dreams and sell my soul”). Curta e a revisitar o primeiro tema, serve como ponte de transição para mais folk.
“Be All Things” continua a ser um panfleto que exprime o cansaço da norte-americana, com guitarra acústica e voz de quem não dorme há dias: “I cannot stop, I want to be all things, I’ve got to let go, I want to be all things”. Este intimismo (no sentido literário) é partilhado a cada momento, o que acaba por criar mais uma novidade no disco, claramente o mais gutural de toda a carreira de Chelsea Wolfe. Os murmúrios, os lamentos, os cantares quase desapaixonados conseguem infiltrar-se sob a nossa pele, criar empatia. “Erde” apresenta mais secções electrónicas, o que combina de forma paradoxal com a toada naturalista do tema, muito despido e primitivo. Assim decorre o disco em quase a sua totalidade, com a penúltima “Highway” a regressar ao tema principal do disco. Para o fim fica o cheiro da chuva e da tempestade com “The Storm”, um outro com dedilhados quase inaudíveis de fundo. “Birth Of Violence” é um bom exercício de cisão que conseguirá granjear novos fãs a Chelsea Wolf e afastar alguns (poucos), pelo menos deste álbum. Quem se habituou a esperar o inesperado desta artista poderá ficar descansado, mesmo porque “Birth Of Violence” é o trabalho mais improvável do seu repertório até agora e soma pontos adicionais por isso. Embora se trate de um registo relativamente lo-fi, a produção é cuidadosa e captura na perfeição os diversos elementos presentes – da viola aos arranjos electrónicos, da bateria discreta ao fuzz das guitarras, nada foi descurado. No seu todo, “Birth Of Violence” é um disco pouco ortodoxo, ainda que regradamente linear, mas possuidor de um allure raro, de algo que se ouve e que marca, talvez porque é tão fácil de ouvir e assimilar. Costumo utilizar a palavra “impressionante” de forma moderada, mas, se existe um disco em 2019 digno de receber o rótulo, esse disco terá obrigatoriamente de ser “Birth Of Violence”.

Metal Hammer Portugal
Six Feet Under “Nightmares of the Decomposed”
Reviews Set 30, 2020
Amaranthe “Manifest”
Reviews Set 29, 2020
Enslaved “Utgard”
Reviews Set 29, 2020
DevilDriver “Dealing With Demons I”
Reviews Set 28, 2020
Neither: no olho da escuridão
Subsolo Set 29, 2020
Fearless End: para consumir sem medo
Subsolo Set 23, 2020
Fast Crash: atitude livre
Subsolo Set 14, 2020
Shemhamforash: escuridão majestosa
Subsolo Set 10, 2020