Introdução à saga dos Saga (1977-)Este mês, o “Perdidos no Arquivo” é muito específico – não é sobre a carreira dos Saga, o lendário...

Introdução à saga dos Saga (1977-)
Este mês, o “Perdidos no Arquivo” é muito específico – não é sobre a carreira dos Saga, o lendário grupo canadiano de rock progressivo, mas sobre uma das suas obras-primas que se estendeu ao longo de diversos álbuns. Não que os Saga não merecessem um lugar nesta coluna, pois mereciam, lá chegará o dia, mas os “The Chapters” terão, desta vez, a nossa atenção pela sua originalidade, desconhecimento e importância para a indústria.

Desvalorizados é um eufemismo para caracterizar a banda dos irmãos Crichton, no baixo e guitarra, Michael Sadler na voz, Steve Negus na bateria e o fantástico Jim Gilmour nas teclas. O quinteto canadiano teve um sucesso moderado nos seus primeiros dois álbuns, “Saga” e “Images at Twilight”, mas saboreou real sucesso no terceiro lançamento de estúdio, “Silent Knight”, sobretudo com a faixa “Don’t Be Late”, o segundo capítulo desta nossa história. Claro que o sucesso do terceiro álbum ajudou a proliferar os sucessos dos dois primeiros, dando atenção mais do que merecida a “Humble Stance”, “Will It Be You?”(IV capítulo), “Tired World” (VI capítulo), “Ice Nice”, “You’re Not Alone” e “Mouse in A Maze”. O terceiro lançamento despoletou o sucesso dos Saga, lançando-os para um patamar de atenção no mundo do rock progressivo. Apesar de não terem tido um sucesso incrível nos EUA, o maior mercado de música, o quinteto captou as atenções do Canadá e de grande parte da Europa, sobretudo na Alemanha, local que é quase uma segunda casa para eles.

A qualidade musical permitiu ao grupo estender a passadeira vermelha da MTV, aquando da sua fundação. O quinteto recebeu muita atenção da estação americana, provocando uma mudança criativa de um rock progressivo para um rock mais comercial, com faixas como “Only Time Will Tell”, “Wildest Dreams”, “Take A Chance”, “Misbehaviour” e “We’ve Been Here Before”. Esta aventura mais cor-de-rosa durou apenas dois álbuns, em 1985 e 1987, com “Behaviour” e “Wildest Dreams”, que, apesar da qualidade, não pegou com os fãs de uma banda que os habituou a um rock progressivo diferente e mais apegado às guitarradas perfurantes de Ian Crichton e aos trejeitos angelicais da voz de Michael Sadler. Ora, como tal, em 1989, os Saga voltaram ao rock progressivo com o excelente “The Beginner’s Guide to Throwing Shapes”, mantendo a sonoridade até aos dias de hoje.

The Chapters (1978-2003)
Mas muito do rock progressivo característico dos Saga prende-se ao sucesso e à originalidade da sua obra-prima, os “The Chapters”. Desconhecido por muitos dos conhecedores do rock, é, na realidade, o único puzzle conceptual da história do rock. Ao longo de sete álbuns, Sadler & Cia. apresentam-nos um dos mais criativos conceitos centrados na Guerra Fria e na Ciência. O puzzle aborda temas como a tecnologia, ficção-científica, extraterrestres e até a ressuscitação através da tecnologia. Os sentimentos de perda, desgosto, miséria e contemplação integram grande parte da narrativa. Foi aqui que os Saga foram tão incríveis – a forma como descrevem um apogeu humano na obtenção dos mais espantosos avanços tecnológicos com o desenvolvimento de máquinas bélicas para combaterem numa guerra sem sentido. Este apogeu tecnológico acaba por trazer ao de cima as fragilidades humanas na proliferação dessa mesma tecnologia e da indústria chamada guerra.

Neste “The Chapters”, os Saga conseguem representar isso mesmo, centrando-se nas falhas do Homem e na sua própria derrota no desenvolvimento do respeito, educação e preservação do mais importante, as relações humanas. Como mencionado, desde o primeiro álbum, é-nos apresentado um conjunto de capítulos soltos de uma história maioritariamente triste e desoladora com traços de esperança em novos tempos. Sobretudo pelo tempo que vivemos actualmente, “The Chapters” é a história perfeita para um momento de confinamento e desolação quase mórbida. Uma das maiores qualidades deste puzzle é o poder de dar ao ouvinte a sua própria interpretação narrativa dentro do conceito pré-concebido.

“Images”, o primeiro capítulo da história, não é realmente o início do puzzle, podendo estar mais situado no fim da narrativa, e conta-nos a contemplação e conformismo de um homem – que poderá ser a representação metafórica de toda a humanidade – que desenha, a giz, representações no chão, com a frase «He sketches all the lost days / And the rain keeps coming down» a simbolizar o estado de espírito de tristeza e desolação de um final ignorante e absurdo para uma humanidade que se deixou levar pela tecnologia e pela estupidez das suas criações.

Apenas nos capítulos II e III é que a narrativa se inicia em tempo de batalha e resistência, sendo os temas mais agressivos do puzzle, com a representação de homens como máquinas construídas e instruídas para matar numa guerra sem sentido. Sem perder o fôlego, ao longo das partes, as perdas e guerras são constantes com uma narrativa que se direcciona sobretudo para uma derrota generalizada dos humanos (máquinas). O quinto capítulo, “No Regrets”, uma das mais emocionantes do puzzle, relata a dura tarefa da reconstrução, mas o apogeu da depressão narrativa atinge-se no X capítulo com a extraordinária interpretação de Jim Gilmour sobre um cientista arrependido que relembra o seu passado e a sua contribuição para esta tragédia humanitária/tecnológica. Apenas no último capítulo é que se vislumbram sinais de esperança na construção de uma vida nova em mundos separados – “Worlds Apart” é o fim de uma história triste e depressiva, mas verdadeira e muito actual, de uma tecnologia avançada construída pelos humanos em que estes se mecanizam para a obtenção de algo que nem eles próprios compreendem.

Durante 25 anos, o puzzle continuou e teve duas partes de oito faixas. A narrativa manteve-se sempre fresca, mesmo com a paragem da banda nos anos 1980 e 1990, quando deixaram de interpretar o puzzle nos álbuns.

A história é surpreendentemente criativa e inteligente, sendo livremente inspirada na Guerra Fria, em Einstein, em “Uncle Albert’s Eyes”, na tecnologia e nas relações humanas. É, ainda hoje, um dos mais incríveis e polémicos contos da história da música e, infelizmente, nunca obteve o sucesso merecido.

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