Não há outra maneira de pôr a coisa. A carreira dos Inhuman tem sido uma viagem e pêras. Depois de dois discos muito promissores...
Foto: cortesia All Noir PR

Não há outra maneira de pôr a coisa. A carreira dos Inhuman tem sido uma viagem e pêras. Depois de dois discos muito promissores editados na segunda metade dos anos 1990, surgiu um abrupto final de carreira. Depois, em 2008, uma tentativa de regresso à actividade, gorada três anos depois. Agora, finalmente, a banda de Silves protagoniza um regresso que dá frutos, com a edição do terceiro disco de estúdio intitulado “Contra”.

«Esse regresso iniciou-se com uma grande motivação», revela o vocalista Pedro Garcia sobre o breve período no final dos anos 2000 em que os Inhuman tentaram, sem sucesso, retomar a carreira. «Os novos elementos que integraram a banda revelaram empenho e durante algum tempo a relação funcionou. Foi bom voltarmos a tocar ao vivo, e o material novo que daí surgiu ainda hoje julgo que tem qualidade. Só que na altura depositámos alguma esperança que pudéssemos fazer algo com significado – infelizmente não resultou e isso acabou por trazer uma grande frustração. Basicamente, e acho que por fruto do grande envolvimento que um dos novos integrantes queria ter na composição, acabámos por chocar relativamente ao caminho que tencionávamos trilhar. Talvez já na altura ansiássemos por ter algum material mais incisivo e agressivo, como veio a suceder agora, mas não soubemos lidar bem com a situação interna e com a gestão de egos. Ainda assim, ficou a experiência e, hoje em dia, relacionamo-nos muito bem com esses ex-integrantes».

Agora foi, no entanto, de vez. Os Inhuman regressaram aos discos e aos palcos, e “Contra”, o ambicionado e muito aguardado terceiro álbum de originais dos algarvios, é finalmente uma realidade. Contudo, foi o fundo de catálogo o gatilho que despoletou a derradeira reunião do colectivo. «O plano era apenas tocar ao vivo para comemorar o vigésimo aniversário do lançamento do [disco de estreia] “Strange Desire” e verificar como nos íamos sentir juntos e nos concertos», explica Pedro. E continua: «Inicialmente íamos fazer apenas um concerto no Algarve, mas surgiram mais convites e o entusiasmo cresceu. Nessa fase todos estávamos a reviver algo que marcou muito as nossas vidas e o entusiasmo foi evidente. As reacções do público também foram extremamente positivas e deram-nos mais força para o passo seguinte. Sentimos que os Inhuman ainda tinham uma palavra a dizer, mas ao mesmo tempo começámos também a verificar que, sem material novo, todos estes sentimentos eram irrelevantes. Não queríamos ser uma versão de nós próprios, era preciso irmos mais longe com todos os riscos que isso iria representar. Tínhamos muitas dúvidas, mas resolvemos ir em frente e hoje podemos afirmar que tomámos a decisão certa».

O resultado, “Contra”, é um disco que consegue transpor com sucesso o rock/metal gótico dos Inhuman para o agora, como se os hiatos nunca tivessem acontecido. Ou melhor, como se a banda nunca se tivesse separado. Como se os seus cinco elementos não tivessem seguido cada um o seu caminho, enveredado por vidas profissionais e pessoais que os afastaram mais ou menos – conforme o caso – e continuado individualmente as suas viagens musicais, quer a nível de composição e técnica, quer em termos de gostos e influências. O que torna ainda mais extraordinário o facto de “Contra” ser, mais de duas décadas depois de “Foreshadow”, um disco tão coeso e tão… Inhuman. O vocalista da banda admite que «a diferença entre os gostos pessoais poderia constituir um entrave ao sucesso da conclusão da tarefa de compor novo material», mas refere que «talvez conscientes dessa dificuldade, pusemos essa questão um pouco de lado e concentrámo-nos mais em criar boas canções, independentemente da direcção que pudessem ter. Em todo caso, podemos sempre considerar que há sons que nos influenciam sem termos consciência e outros que até gostamos que não têm qualquer influência quando estamos a compor ou a fazer arranjos. Durante a composição fomo-nos apercebendo da diversidade do material, com canções das mais agressivas que já fizemos e outras que se inserem em territórios mais rock ou mais características do metal gótico. A escrita acabou por resultar numa mescla interessante dos gostos do colectivo, e para quem ouve acaba por ser tudo menos monótono, porque o material é bastante diverso. Em estúdio penso que as diferenças ainda se acentuaram mais, uma vez que se torna tudo mais claro, e nós, enquanto intérpretes, tentamos adequar o nosso desempenho às necessidades do material. Ainda assim, no final, o material acaba por ser coeso em termos de conteúdo e fazer sentido naquele conjunto de canções».

Pedro Garcia reforça ainda que uma das maiores preocupações do início de todo o processo foi se a banda seria efectivamente capaz de produzir nova música. «Outra preocupação foi o facto de sermos todos pessoas com gostos bastante diferentes e se seria possível entendermo-nos relativamente ao material novo que ia surgir. Sinceramente pensei que fosse muito complicado e que a meio do processo tudo pudesse ruir. Felizmente não aconteceu e o álbum é uma realidade. Nesta banda costuma haver uma regra: não apontamos direcções a seguir, as ideias surgem e vão sendo avaliadas. Penso que temos um sentido crítico apurado e pensamos sempre que temos de melhorar as composições. O processo é espontâneo e inconsciente de facto, o barómetro é o nosso espírito crítico e as nossas limitações técnicas». E conclui: «Fizemos isto por nós. Achámos que devíamos este disco a nós próprios. Relativamente à identidade da banda, considero que veio a afirmar-se ao longo dos lançamentos e, por mais que tentemos dar voltas, acho que somos uma banda de canções – mais rock ou mais perto do metal extremo – mas sempre canções. Essa é a nossa identidade».

Não é, de todo, habitual vermos uma reunião integral de uma banda décadas depois da sua formação original. Mas os Inhuman fizeram-no. Todos os músicos de “Contra” são precisamente os que gravaram “Strange Desire” em 1996 e “Foreshadow” em 1998: o baixista Rogério Sequeira, o baterista José Vairinhos, o guitarrista João Pedro, o teclista Diogo Simões e o nosso interlocutor, que admite que, naturalmente, ao longo de todos estes anos, houve períodos de maior afastamento. «Pessoalmente e por causa da encarnação da banda entre 2007 e 2010, estive mais perto do João Pedro e do Rogério. As relações nunca foram consideradas más, mesmo quando eu saí em 1998. Houve mágoas, mas más relações não. Naturalmente há pessoas que têm mais afinidade do que outras e julgo que neste novo começo tentámos todos ser cuidadosos com o que dizíamos uns aos outros, para levar isto até ao fim», refere. «É natural que eu tenha uma relação mais próxima com o João Pedro. Há alguns anos tornámo-nos acidentalmente vizinhos, as nossas famílias convivem, temos filhas com a mesma idade e ambos pensamos muito a banda a todos os níveis. Considerando a relação entre os cinco, há sempre dificuldade em manter todos no mesmo nível de empenho e motivação, é uma questão natural em todo o tipo de organizações sociais, há sempre quem esteja mais à frente e puxe pelos outros, mas julgo que a vida em comunidade é mesmo assim. Pessoalmente, há uns anos duvidava que este terceiro álbum fosse uma realidade e julgo que colectivamente temos todos motivos de orgulho por termos feito isto acontecer».

A veterania, no caso destes algarvios, não é só um posto. Os anos fora da cena, longe da indústria musical, tornam todo este regresso uma aventura por vezes demasiado grande para tentar abarcar tudo o que mudou, e quão rapidamente, de uma vez só. «Efectivamente, a indústria musical mudou bastante nos últimos anos a vários níveis. Não interessa dissecar se para melhor ou pior, interessa coexistir neste novo mundo e tentarmos a adaptação às alterações que se verificam. Ainda nos estamos a ambientar a tudo, até à nossa própria forma de trabalhar, às novas ferramentas, enfim, a toda uma nova realidade», refere Pedro, para depois reflectir: «A música acaba por seguir as tendências de qualquer outro bem, onde tudo é consumido de forma mais efémera e imediata. Todo o consumo cultural mudou e temos de ter essa noção. Há 20 anos, o produto cultural, neste caso a música, era obtida com bastante mais esforço por parte do consumidor, logo a valorização era superior. Hoje em dia saem centenas de álbuns bons todos os meses, fica complicado ouvir todos, e quando isso acontece, há a necessidade de partir rapidamente para outro. Aquela aura de surpresa ou agrado rapidamente se desvanece». E o lado positivo? «Nós temos a vantagem de não sermos artistas a tempo inteiro, não temos pressão para agradar ninguém. Isto é apenas algo que nos dá prazer fazer e se isso agradar às pessoas, será óptimo, mas se acontecer o contrário, em nada vai afectar o normal curso das nossas vidas. Chegados a esta idade e com o tempo que passou, parece que temos necessidade de afirmar que estamos cá e temos algo importante a transmitir, temos mensagens fortes nas nossas canções e não nos importamos sequer que alguém fique ofendido. É uma rebeldia que foi contida, acumulada, e este disco é uma forma de dizer que estamos atentos e críticos em relação ao que não concordamos».

No entanto, quem pensa que os Inhuman vão andar pelo país a dar concertos só à conta do saudosismo e do puro prazer, pode desenganar-se. Apesar de admitir que os concertos são dos momentos que dão mais prazer à banda por ser nessas alturas que sentem a música com maior intensidade, Pedro Garcia refere que «infelizmente, e isto passa-se com maior incidência neste tipo de música, tocar ao vivo deixou de ser uma actividade devidamente reconhecida e remunerada. Numa opinião muito pessoal, considero que os grandes culpados são precisamente os próprios músicos que, talvez motivados por um desejo de aumentar o número de actuações, realizam-nas sem reivindicar a devida retribuição. Resultado: se há bandas que tocam sem cobrar, os promotores procuram-nas mais, e quem exige um pouco que seja torna-se menos solicitado. A minha experiência pessoal de programação cultural com música de outros estilos confirma-me que esta situação só se passa na área do rock, o que é lamentável porque isso influi até na valorização que o público faz da música». E conclui: «Estamos preparados e temos prazer em actuar ao vivo, mas não nos peçam que tenhamos prejuízo com as despesas que estão inerentes. Estamos motivados para nos dedicarmos à banda, dentro das limitações que as nossas vidas pessoais permitem, mas não estamos obcecados em ter uma carreira. O que tiver de acontecer, acontecerá certamente».

Finalmente, o elefante na sala. Como é que uma banda que, nos anos 1990, tinha tudo para ser os próximos Moonspell, comparações com Paradise Lost e interesse da Music For Nations incluídas, se desvanece assim e deixa tudo para trás? O que correu mal ali, algures? «Apesar do sucesso relativo da demo com que nos apresentámos ao público em 1995 e dos dois álbuns que a seguiram, fomos vítimas de vários factores menos positivos consequentes a isso. Talvez por alguma ingenuidade e imaturidade acabámos por nem sempre fazer as melhores escolhas e fomos um pouco vítimas de nós próprios», explica o vocalista. «Olhando em retrospectiva, é complicado estar a particularizar esta ou outra escolha, mas julgo que há momentos capitais que definiram o futuro que a carreira da banda acabou por ter. Também há uma grande diferença entre julgar a situação estando envolvido e outras análises que por vezes ouço de pessoas que estavam fora. Há quem diga, por exemplo, que foi um erro assinarmos pela União Lisboa, mas talvez pouca gente saiba que pouco antes houve em Portugal quem impedisse a Music For Nations de nos contratar na primeira vez que houve interesse. A União Lisboa acabou por aparecer com boas condições para prosseguirmos a nossa carreira e dar um passo em frente. Escolhemos o produtor que quisemos, gravámos um disco em Inglaterra com excelentes condições de trabalho e a nível nacional as coisas funcionaram muito bem. Há quem ache também que o “Foreshadow” foi um passo demasiado diferente do “Strange Desire”, mas fomos nós que o quisemos dar, de forma totalmente espontânea e não, o [produtor] Simon Efemey não nos forçou a ir por aquele caminho, apenas nos ajudou a fazer o que queríamos. Apesar de na altura existirem vários detractores relativamente à mudança de sonoridade, globalmente houve muita gente que adorou o disco e acabámos por ter uma exposição muito maior graças a esse lançamento. Houve, como disse, coisas menos boas, como uma segunda investida da Music For Nations recusada pela União Lisboa, e julgo que aí foi o princípio do fim. Houve maior pressão nos concertos ao vivo, situação que fez algumas pessoas que nos rodeavam preocuparem-se mais em criticar-nos do que em fazer-nos melhorar. A desilusão da expectativa de uma carreira internacional culminou num mal-estar crescente e eu acabei por ser a primeira vítima. Depois disso a banda fez um bom trabalho de promoção do disco, mas julgo que nunca se encontrou até este último regresso.»

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