“Vökudraumsins fangi” consegue ser tão agreste quanto harmonioso.

Editora: Season of Mist
Data de lançamento: 30.10.2020
Género: black metal
Nota: 4.5/5

“Vökudraumsins fangi” consegue ser tão agreste quanto harmonioso.

“Vökudraumsins fangi” é o terceiro álbum dos islandeses Auðn, um projecto fundado em 2010 que desde o início se tem distinguido das outras bandas de black metal locais. O grupo dispensou o uso de maquilhagem e optou por uma vertente melódica e atmosférica desde o álbum de estreia homónimo editado em 2014. Apesar do percurso marcado por uma progressiva ascensão com passagem pelo Festival Wacken (2016), na origem do contrato com a Season of Mist para edição do álbum “Farvegir Fyrndar” (2017), e pelos principais festivais europeus como Roadburn, Inferno, Copenhell, Summer Breeze Open Air, Eurosonic Noorderslag, Roskilde, Eindhoven Metal Meeting, entre outros, a banda foi marginalizada pela comunidade indígena de black metalheads.

A cena black metal na Islândia terá começado com as duas primeiras demos de Sólstafir, na segunda metade dos anos 1990. A colectânea “Fire & Ice” organizada por Gummi, ex-baterista da banda, reúne uma amostra dessa primeira vaga com grupos como Dysthymia, Withered e Ámsvartnir. Há também quem refira os Potentiam, um projecto anterior de Einar (Fortíð) como outro dos precursores. A comunidade de músicos local reconhece consensualmente a importância da banda de culto Myrk (2000) como pioneiros do género e dos veteranos Svartidauði, projecto fundado em 2002, autores da demo “Temple of Deformation” (2006) e do álbum “Flesh Cathedral” (2012). Começou aí o ponto de viragem e o florescimento das bandas que ajudaram a definir o black metal islandês da última década: Svartidauði, Sinmara, Misþyrming, Wormlust, Mannveira e Auðn.

A melhor definição de Auðn traduz-se no inglês ‘wasteland’, tal como a paisagem árida e inóspita desta ilha remota no Atlântico Norte preenchida por montanhas vulcânicas e pela tundra de clima polar, onde a vegetação escasseia e pouco ou nada floresce. “Vökudraumsins fangi” identifica um estado de vigília permanente e as sensações delirantes causadas pelos dias de Inverno com a mínima luz solar ou pelas insónias alucinantes dos verões de sol à meia-noite. Tudo isto interfere de sobremaneira no estado emocional e psicológico duma juventude que procura fugir a este isolamento e encontra na música uma forma de se expressar.

No lançamento do álbum de estreia homónimo em 2016, Andri Björn Birgisson, guitarrista e compositor, descreveu numa entrevista a um jornal local a sonoridade da banda como algo melódico, gélido e sombrio, em busca duma dimensão cinematográfica em sintonia com a estética expressionista, descrevendo uma visão subjectiva e emocional da realidade através duma paleta sonora agressiva e melancólica. O novo álbum vem reforçar esta afirmação. Para além do baixo, bateria, e voz, este sexteto emprega três guitarras, cujas diferentes tonalidades permitem construir vários campos harmónicos, uma das características que define a sua imagem de marca.

O black metal clássico de “Eldborg”, o primeiro tema a servir de amostra ao álbum, muito marcado pela velocidade e pela agressividade da voz, é pouco surpreendente. A banda escolheu ainda “Ljóstýra” e “Verður von að bráð” como o segundo e terceiro singles de apresentação ao álbum. “Verður von að bráð” é mais alinhado com o heavy metal convencional do que com esta extremidade do género, no entanto deixa bem clara a competência dos islandeses, quer na composição, quer na agilidade e execução técnica. “Ljóstýra” é o mais criativo, e um dos melhores. Uma composição dinâmica que expõe tanto a angústia e a tristeza, ou o lado melancólico do álbum, como a fúria e o fogo da componente mais opressiva.

“Einn um alla tíð” inicia o alinhamento numa toada semi-acústica para dar lugar a passagens ultra-rápidas numa velocidade descontrolada, prego a fundo, e uma interpretação vocal centrada num desespero profundo, contrastando com momentos explosivos, instrumentais melódicos e atmosféricos. “Birtan hugann brennir” acentua a tristeza, o dramatismo e a solidão que definem as temáticas abordadas neste registo. “Drepsótt”, a quinta faixa a meio do álbum, é um tema com um ritmo muito quebrado, com a bateria a impor-se paralelamente aos graves dos riffs perfilados na cadência repetida abruptamente. “Horfin mér” é uma composição com uma estrutura invulgar, dividido em duas partes, sendo que a primeira é mais rápida e orquestrada num sentido épico e a segunda é mais arrastada e teatral. Mergulhando a fundo no álbum, que termina com a faixa-título, quase toda instrumental e essencialmente atmosférica, sente-se algum efeito hipnótico, um certo transe depressivo. “Vökudraumsins fangi” consegue ser tão agreste quanto harmonioso.

Por fim, uma palavra elogiosa para a mistura e masterização do produtor Stephen Lockhart, o irlandês emigrado na Islândia responsável pelo Studio Emissary e organizador do festival Ascension, dedicado não só ao black metal mas também ao post-punk, doom e darkwave, nascido das cinzas do extinto festival Oration.