O novo trabalho dos Gaerea pode ser um mote para novas interpretações e posturas, mas é principalmente a afirmação de uma banda que se...

Editora: Season Of Mist
Data de lançamento: 24.07.2020
Género: black metal
Nota: 4.5/5

O novo trabalho dos Gaerea pode ser um mote para novas interpretações e posturas, mas é principalmente a afirmação de uma banda que se afasta cada vez mais do hype e se aproxima a passos largos da certeza.

Nos últimos tempos, dificilmente encontramos uma banda portuguesa que tenha experimentado uma ascensão tão meteórica como a dos Gaerea. Em poucos anos de existência, com origem no EP homónimo de 2016, os enigmáticos Gaerea começaram por conquistar o país, a Europa e um pouco da Ásia com o primeiro LP “Unsettling Whispers” (2018). O futuro era promissor e a teimosia de serem os melhores naquilo que fazem levou-os à importantíssima Season Of Mist, editora com que lançam a novidade “Limbo”.

Inseridos numa nova vaga de black metal existencialista, em que bandas como Blaze Of Perdition, Imperium Dekadenz ou Harakiri for the Sky discutem a natureza humana e as suas emoções em contraste com o ódio e destruição total dos anos 1990, os Gaerea dão um passo em frente com este “Limbo”. Isto é, enquanto “Unsettling Whispers” se debruçava em aspectos mais negativos sobre seres que vivem em sociedades / ambientes que detestam com o suicídio em massa ao fundo do túnel, “Limbo” busca salvação e libertação, mesmo que não devamos esquecer a vagueação e a perdição que o título e a capa do disco nos fazem evocar. Por mais que continue a haver loucura, agonia e ansiedade na forma como as palavras saem berradas da boca do vocalista, as letras trilham um caminho árduo em direcção à luz ao invés do pânico generalizado da escuridão, mesmo que esses passos sejam muitas vezes solitários e ziguezagueantes. Por exemplo, enquanto “Null” nos relembra alguém deixado à sua sorte sob o Sol, mas que ainda assim se sente superior e secretamente perverso – Caim ou Lúcifer, talvez –, “Glare” exorta sobre o facto de ficarmos cegos para sempre se nos mantivermos sob o jugo do medo e “Conspiranoia” apela ao encontro de um homem novo com um certo sabor a misantropismo.

Ironicamente, esta rebeldia para com o mundo e para com o conceito (ultrapassado?) do black metal em si não é feita através de melodias positivas e abertas. No seio da busca pela salvação, os Gaerea apresentam-se musicalmente claustrofóbicos aqui e ali, sempre densos e cada vez mais introspectivos. Furioso do princípio ao fim (e não confundir fúria com ódio), “Limbo” é uma portentosa wall of sound ritmada por uma bateria insana e por riffs dissonantes que se interligam com leads angustiantes, muitas vezes em modo de choro, como se ouve na inaugural “To Ain” (um tema que funciona como uma ode à queda do homem e com um título inspirado, quiçá mas não só, em “Waters of Ain” dos Watain), ou em modo quase épico, como se absorve em “Urge”.

Porém, a tal cólera não tem de ser necessariamente veloz e robusta a toda a largura. A criação de uma tensão é essencial em muito do que conhecemos no metal, especialmente nos subgéneros mais extremos, e nisso os Gaerea estão no caminho certo ao testemunharmos faixas como “Mare” ou “Conspiranoia”, esta que começa lenta e perfurante em tom cerimonial (até coros são incluídos) para depois rebentar num turbilhão de berros (ora demoníacos, ora sofredores), blast-beats cristalinos e riffs dilacerantes que rasgam e queimam ao mesmo tempo. Sem qualquer dúvida, esta música ficará para a história como uma das melhores composições que o metal português já viu nascer.

Pertencentes a uma geração mais recente e cientes da evolução do mundo artístico dentro do metal, os Gaerea, como outros exemplos dados anteriormente neste texto, substituem o riff directo e cru por cascatas de acordes que saem da caixa, que vão mais além do estimado power-chord, fornecendo assim um tornado de sensações estranhas e revoltadas que tanto tremem o chão como o nosso âmago.

Lançado num período em que desejamos ardentemente ser libertados (tanto da crise sanitária como do caos político que opõe anti-racismo versus racismo, feminismo versus misoginia, igualdade versus desigualdade), o novo trabalho dos Gaerea pode ser um mote para novas interpretações e posturas, mas é principalmente a afirmação de uma banda que se afasta cada vez mais do hype e se aproxima a passos largos da certeza. O tempo o dirá.