«Tocar com uma orquestra é realmente algo muito especial.» Pedro ‘Sarrufo’ Ataíde (Rasgo) Muitos de nós crescemos a ouvir Metallica e a saber que...

«Tocar com uma orquestra é realmente algo muito especial.»

Pedro ‘Sarrufo’ Ataíde (Rasgo)

Muitos de nós crescemos a ouvir Metallica e a saber que o metal tem uma ligação muito forte à música clássica se nos lembrarmos, por exemplo, de Yngwie Malmsteen, até que em 1999 é lançado “S&M”, o sonho molhado de nerds metálicos que junta (thrash) metal e clássico. O conceito cresceu, pegou e chegou inclusivamente ao black metal, com maior destaque para Cradle Of Filth e Dimmu Borgir. Em Portugal, país que está na vanguarda de tantos campos – do desporto à tecnologia –, demorou-se quase 20 anos a materializar uma jogada musical tão inebriante.

Em Outubro de 2017 sai o álbum “Ecos da Selva Urbana” dos Rasgo, um colectivo thrash metal que canta em português e que é composto por membros que têm no currículo bandas como Tara Perdida e Shadowsphere. Acto contínuo, o tema “Homens Ao Mar” tornou-se numa das músicas mais contagiantes dos últimos anos na cena metal nacional. Muitas coisas podiam-se fazer a seguir – como desfrutar, deixar a música ficar na História e arrepiar caminho para outras conquistas –, mas os Rasgo quiseram elevar a fasquia ainda no presente. E é aqui que entra a música clássica: “Homens Ao Mar”, com auxílio do maestro Pedro Teixeira Silva e da Orquestra do Círculo de Música de Câmara, ganhou ainda mais um espaço no pedestal das melhores composições metal de sempre em Portugal.

«Claro que o “S&M” é um marco na História e sou fã de Metallica, sem medos», diz-nos o guitarrista Rui ‘Ruka’ Costa, admitindo seguidamente que nunca sonhou fazer uma coisa destas, mas há sempre um ‘mas’, como remata na fase inicial da entrevista: «Já que o fiz, sinto um enorme orgulho.» Por seu turno, o também guitarrista Pedro ‘Sarrufo’ Ataíde consente que «tocar com uma orquestra é realmente algo muito especial», mas não classifica tal acontecimento como um sonho. Contudo, e por mais que este evento não seja considerado um sonho, ambos os músicos sentem grande brio nesta roupagem orquestral dada a “Homens Ao Mar”, porque sentiam que existia potencial nela para se ir mais longe, assegurando que «uma orquestra  poderia acentuar decisivamente a dimensão que sempre se quis dar a este tema».

Qualificada por Ruka como uma música «épica já por si», que contém uma «mensagem que transmite a força de um povo», a ideia foi torná-la ainda mais épica com a orquestra, assim pairando sobre nós a presença do maestro Pedro Teixeira Silva que efectuou um trabalho «espectacular» e que «elevou a qualidade do tema», segundo as palavras de Ruka. «Deixámos tudo nas mãos dele, sabíamos que nos surpreenderia», remata. Considerado por Sarrufo «a pessoa indicada» para ajudar os Rasgo a atingirem os seus propósitos, o maestro contou-nos que este «foi sem dúvida um dos mais ambiciosos e arrojados projectos» que lhe propuseram. Todavia, sabemos que tal engrenagem não funciona apenas com uns meros pingos de óleo, como o próprio Teixeira Silva aponta: «Devido ao tema original já ser tão denso e preenchido musicalmente, encontrar espaços em que ambos (banda e orquestra) pudessem coabitar e igualmente ter o cuidado de fundir dois universos musicais tão diferentes não era tarefa simples.» Aliás, é «um verdadeiro desafio», mas «depois de uma análise cuidada ao tipo de arranjo que iria conceber e vendo o resultado final foi pura satisfação e um trabalho que muito prazer me deu em colaborar».

De um lado o pessoal do punk e do metal, do outro os eruditos da música clássica, mas mais uma vez dois mundos aparentemente distintos não só não chocam como ainda se unem. «Clássico, metal, punk… No fundo somos todos músicos, e o que fazemos, trabalhamos, ensaiamos e estudamos é por amor à música independentemente do seu estilo ou origem. Partindo desta filosofia, tudo se torna mais envolvente, e a partilha musical e o nosso conhecimento crescem sempre a cada nova experiência», evidencia o maestro. Sarrufo, que é amigo pessoal de Teixeira Silva há muitos anos, revela que «a abordagem foi muito directa», e «após aceitar embarcar nesta aventura explicámos o que pretendíamos, com a certeza de que ele iria fazer algo espectacular». Porém, e por mais elogios que sejam feitos aos arranjos magicados pelo maestro, Sarrufo relembra que «os Rasgo e o Pedro são apenas dois terços desta equação», faltando assim referir a Orquestra Círculo de Música de Câmara e o «trabalho magnífico que fizeram».

«Foi uma pura satisfação e um trabalho do qual muito prazer me deu em colaborar.»

Pedro Teixeira Silva (maestro)

Alberto Campos, violoncelista da orquestra e que inclui no seu percurso vários anos como músico profissional no Teatro São Carlos, conta com quase 50 anos de carreira, o que lhe facilita já ter testemunhado e feito parte de inúmeras abordagens musicais. «Esta experiência não foi surpresa para mim, porque já tinha ouvido e até participado em gravações e programas de fusão de géneros semelhantes.» Porém, o melhor para Alberto «foi descobrir a alegria e o entusiasmo dos elementos do grupo que se entregam de alma e coração ao projecto». Não sendo um adepto de sonoridades metal, o músico já participou em concertos, gravações e espectáculos em que o poderio sonoro era também excessivo, «mas quando a música tem qualidade e transmite algo importante, nada nos pode perturbar», assegura com profissionalismo e dedicação.

Nas entrevistas levadas a cabo conhecemos ainda as violinistas Sara Cruz e Susana Pais (responsável pela Orquestra) que, atraídas pelo processo, têm posições diferentes em relação a olhar para isto como um objectivo a alcançar forçosamente. Como Ruka e Sarrufo, Susana «não diria que era um sonho», apesar de a fascinar esta união do mundo clássico com o do rock ou metal. Ainda assim, acha «absolutamente incrível como se conseguem complementar e a forma como, sobretudo as cordas, acrescentam uma sonoridade que engrandece os temas e os torna quase épicos». Para Sara, poder oferecer os seus préstimos clássicos a um arranjo direccionado ao metal era de certa forma um sonho, como conta: «É sempre desafiante sair daquilo a que estamos acostumados, e quando o desafio se cruza com algo de que se gosta ainda mais interessante se torna. Sempre tive vontade de juntar os dois mundos e aqui tive essa possibilidade!»

Depois de terem as pautas à frente e após terem começado a perceber o que dali sairia, tendo em conta o metal dos Rasgo, houve por certo um sentimento forte quando deram por si a fazer parte desta jornada quase cinematográfica. Mais: o corpo humano estava prestes a tornar-se uno com o violino alinhado às guitarras eléctricas, a um berro ou a um blast-beat. «O sentimento é muito energético», exclama Sara Cruz. «Foi absolutamente incrível e inacreditável», exalta Susana Pais. Na perspectiva de Sara, encara-se o instrumento de uma nova forma, o que muda tudo: «a maneira de tocar, a energia, o espírito de toda a orquestra». «Se voltar a pensar na gravação, volto a sentir toda a energia que ali se criou», atestando esta união com os Rasgo como marcante, entusiasmante e uma experiência única. Já Susana Pais mostrou-se mais céptica numa instância inicial: «A primeira vez que ouvi a música original não acreditei que fosse possível um arranjo de orquestra fazer sentido, mas no primeiro ensaio em que nos colocaram as pautas à frente e tocámos pela primeira vez a parte de orquestra, percebi que algo mágico ia acontecer.» Incredulidade e descrença ultrapassadas, a violinista sentiu algo novo quando gravou ao lado dos thrashers: «As cordas ganharam uma dimensão rude, às vezes até agressiva, que casou na perfeição com a batida dos Rasgo.»

Na verdade, todo este procedimento não pode ser feito de pé para a mão e envolve obviamente um lado pedagógico que tem origem em Pedro Teixeira Silva, não só maestro mas também responsável pelo arranjo orquestral, corroborando assim: «Envolver a orquestra num estilo e abordagem musical que sai da sua zona habitual de conforto requereu primeiramente da minha parte uma ‘palestra’ de conceitos estilísticos, até porque temos que ter a consciência da enorme variedade etária entre os seus membros. Depois disso, e antes mesmo de iniciar a leitura do arranjo, fiz questão que a orquestra ouvisse o tema na sua forma original com a finalidade de a familiarizar e introduzir ao estilo musical em que iriam participar.» Mas mais uma vez, o primeiro impacto de estranheza foi destituído: «O curioso é que, imediatamente após a audição do tema, os aplausos surgiram e estava criado o entusiamo e ambiente necessários para iniciar o ensaio que viria a dar na conclusão que todos se orgulham de ter participado.» E se a Orquestra Círculo de Música de Câmara está de parabéns aos olhos de Teixeira Silva, o quinteto metálico não fica atrás: «Trabalhar com os Rasgo foi simples. São super-energéticos e bem-dispostos, com uma vontade de fazer as coisas acontecerem, o que gera uma energia incrível.»

A sensibilidade das palavras é recíproca. «Tivemos a sorte de ter um grupo enorme de profissionais à nossa volta, prontos para dar o seu melhor e ajudar-nos a fazer o impensável acontecer», salienta Sarrufo. Ruka conclui: «Poder trabalhar com compositores como Pedro Teixeira Silva é, para mim, uma honra. E sim, é, sem dúvida, um estupendo resultado final.»

Originalmente publicado em Ultraje #17 – Agosto/Setembro 2018.