Da agricultura ao vinho, em homenagem a quem trabalha a terra, Omitir é a uma das mais recentes colheitas do underground...
Foto: via Bandcamp

«”Ode” é uma palavra universal, é uma homenagem, algo solene, um poema, um cântico sobre essas pessoas que viveram a trabalhar de sol a sol.»

Gróvio

“O copo de vinho é o pequeno poço de prata onde a verdade, quando existe, se constata”, disse o eterno bardo. Se é verdade que quem bebe vinho prova do rio imemorial da Humanidade, poucos são os países que tanto lhe devem em tempos mais recentes quanto Portugal. Importante recurso económico e gastronómico, há pouco menos de cinquenta anos era um dos principais símbolos da nossa identidade: do vinho utilizado nos cozinhados ao vendido em tavernas e consumido igualmente pelos estudantes universitários nas cidades e pelos agricultores no Interior, ao fino vinho do Porto e ao robusto vinho do Dão exportados amiúde para todo o mundo, o líquido foi uma das principais fontes de receitas nacionais e ultramarinas, bem como um dos principais conectores de gentes de todas as camadas sociais. A importância do vinho no Estado Novo foi tal que, sem aquele, este não teria durado os anos que durou.

Assim, o vinho teve um papel fundamental para a subsistência de milhares de portugueses que, jorna após jorna, ganharam a vida de forma dura e geralmente submetidos a condições precárias. É essa a mensagem principal transmitida em “Ode”, a nova coqueluche do black metal nacional que tem dado que falar no circuito um pouco por todo o mundo. Indo direito ao assunto – mas que raio tem a vinicultura a ver com black metal? Tudo, aparentemente. Pelo menos na ideia de Gróvio, dono do latifúndio e autor de “Ode”. Nada foi deixado ao acaso em “Ode”, a começar pela capa – nela, deparamo-nos com “O Sétimo Mandamento”, de José Malhoa, e sentimos algo. Sentimos a aura de grandeza típica que assiste a obras e génios maiores e identificamo-nos imediatamente com ela por fazer parte da nossa cultura. É necessário tempo para lançar uma obra marcante mas, no caso de Gróvio, tudo indica o oposto. «O disco foi integralmente feito em 2020, desde a composição à produção final. Já tinha alguns esboços e devido à situação da quarentena tive mais tempo para dedicar a este trabalho. Peguei nos esboços e fui fazendo. O álbum foi feito em cerca de três meses, tudo incluído. A capa surgiu durante o processo de composição – estava a tentar encontrar algo que identificasse o que eu estava a fazer e acabou por ser ela própria uma influência. Encontrei-a, identifiquei-me de imediato com ela e fui-me influenciando nela também. A capa teve influência no resultado final.

“Ode” é, de facto, uma ode à nossa tradição agrícola e silvícola, ao naturalismo, ao folclore, aos deuses celtas da Península Ibérica e, claro, à terra. A capa está intimamente ligada ao conceito do disco, muito porque José Malhoa é o expoente máximo no que toca a capturar em tela os hábitos e a cultura dos portugueses no dia-a-dia. Apropriada, realmente, pois “Ode” é um regresso conceitual a tempos mais simples, às raízes primárias e milenares de todo um povo. «O disco saiu de forma natural e inesperada, que surgiu de um junção de ideias. O conceito também está ligado à actualidade, pois tem uma faceta saudosista e uma interpretação mais directa da população que sofreu uma opressão extremamente agressiva nessa altura, do feudalismo à reforma agrária, primeiro pela mão dos nobres e dos coutos e depois pelos latifundiários e pelo Estado Novo, claro. “Ode” é uma palavra universal, é uma homenagem, algo solene, um poema, um cântico sobre essas pessoas que viveram a trabalhar de sol a sol. A parte mais pagã é menos linear cronologicamente, juntam-se vários tempos e espaços para justificar determinadas canções. O paganismo vai de encontro às pessoas e deuses tribais, dos galaicos aos lusitanos, que tinham os seus próprios mitos e crenças. Contrasta com a igreja e com a Inquisição, que foram importantes na opressão do povo em tempos posteriores.»

Com “Ode”, Gróvio cria um dos discos de black metal mais atípicos da nossa cena. E até da cena em geral, na verdade. O black metal evoluiu imenso, e hoje é relativamente normal fazer um disco desse género com letras sobre qualquer coisa menos Satanás: dos horrores inenarráveis de H. P. Lovecraft à Segunda Guerra Mundial, do infindável espaço cósmico ao cão do vizinho, quase tudo é abordado pelo black metal actual. Logo, por que não falar sobre as dificuldades dos povos para, depois, abordar os temas mais clássicos como religião e paganismo? Parece ser uma visão muito particular de Gróvio sobre o assunto, uma coisa que o músico discorda até certo ponto. «Não sei se será uma visão particular minha, conheço várias pessoas com uma visão do que é a igreja na nossa sociedade. A igreja sempre foi opressora. Actualmente perdeu muita força graças à ciência, mas regressando ao Estado Novo e até ao seu final verificamos que teve um papel muito importante na opressão das populações. Isso para não dizer que muito anteriormente substituiu as crenças antigas das populações. As crenças ainda existem. Os santos representam de forma corrupta os deuses pagãos, por exemplo. Foi um organismo que criou obscurantismo desde que foi instituído. Em relação ao satanismo, não é importante. Importante é definir bem o que é uma religião, a fé, as instituições e o que elas fazem na sociedade. O que a igreja fez na sociedade não foi positivo – reprimiu e enriqueceu, e depois é hipócrita quando fala em ajudar os menos favorecidos.»

«Sou de esquerda e antifascista.»

Gróvio

A determinado momento ficamos sem perceber se Gróvio fala apenas de crenças e história ou, também, de política. Depois, quando ouvimos um excerto de um discurso de Jerónimo de Sousa sobre a reforma agrária em “Vera Busca”, certamente o momento mais épico em todo o disco, mais tentados ficamos a enveredar por essa linha de pensamento. «Pessoalmente, tenho uma posição política – pontos nos is: sou de esquerda e antifascista. No entanto, Omitir nunca teve intenção de falar sobre política. Acontece que esse discurso sobre a reforma agrária não é político, mas histórico – factual, existiu. Um amigo meu disse-me a brincar que deveria meter no disco um discurso do Jerónimo. Procurei, encontrei, inseri-o e encaixou perfeitamente. O PCP é um pouco saudosista, é verdade, mas teve uma importância fundamental na história do nosso país. O discurso do Jerónimo é uma homenagem a essas pessoas. É o único partido que fala sobre e homenageia a Catarina Eufémia, por exemplo, mesmo não se apropriando da imagem dela. Existem duas facetas e ambas são a mesma: não é um álbum político e é um álbum histórico, factual.»

“Ode” é de uma dualidade monstra. Em “Ceiva” ouvimos chocalhos, acordeão e uma batida de fundo inicial que nos remete para a eterna “Revelation of Doom”, dos Bathory. “Flora” apresenta-nos os cacarejares de galinhas e pintos e regressa o acordeão. Em “Cear” ouvimos água corrente e a tradição galaico-portuguesa da música ligeira. “Flora” poderia ter sido uma página arrancada ao caderno de rascunhos de “Belus”, de Burzum. “Âmago” consegue ser o momento mais naturalista de todo o registo, fazendo lembrar Drudkh. A batida de fundo inicial que ouvimos originalmente em “Ceiva” encerra o disco de forma puramente atmosférica. Embora com as referidas influências, existe algo em “Ode” que nos faz sentir pertença, algo que é exclusivamente nosso por hereditariedade, algo de português. Mas, em síntese, como é que se doma um animal desta magnitude? «Quando produzo algo, pego em todas as ideias que me surgem e junto-as. Se algo não está bem, não lanço. Só lanço quando tenho a certeza que é aquilo que quero que saia. Houve uma junção de ideias e o resultado é este. Surgiu tudo de forma natural. Sou um adepto da criação livre, sem preconceitos ou estereótipos e medos. Supostamente, é isto que devemos fazer em detrimento de regras. É como sou perante as artes, totalmente livre. Livre de escolher sem influências de terceiros. Uma pessoa tem uma ideia e transforma-a. Quando criei Omitir tive outra pessoa que me acompanhou na gravação das guitarras, mas continuei só, é algo de muito solitário. Sempre foi assim desde o princípio.»

Os idiomas utilizados no disco são português e galego, porque claro que são. «Sim, pois retrato a vida galaica e portuguesa. Tentei utilizar palavras simples do galaico e do português, palavras como ‘áugua’, ‘noum’, coisas muito básicas para exprimir a língua desses tempos. Mas custa-me ouvir e não atinge o país todo – a reforma agrária teve grande impacto no Alentejo, logo, é um pouco suspeita, pois trata-se de uma linguagem nortenha. A parte pagã é muito galaico-portuguesa. Nábia é uma deusa do Minho, da zona de Braga, deusa dos rios e dos vales, com tudo o que está relacionado com a água. A água era escassa e preciosa para a agricultura, daí essa lógica.»

Ainda que o black metal seja um género habitualmente desprezado em Portugal, o interesse estrangeiro pelos melhores intervenientes nacionais é conhecido: Irae, Corpus Christii, Filii Nigrantium Infernalium e Black Cilice são bons exemplos desta afirmação. O interesse por “Ode” também tem sido notável e Gróvio confirma-o falando um pouco sobre os formatos físicos existentes e até hipotéticos, bem como o futuro do projecto. «”Ode” foi lançado no formato CD-digipak. Fiz uma edição limitada de 15 cassetes e voaram, estão esgotadas. Gravei-as manualmente num gravador muito antigo – teve de ser uma a uma, daí a edição limitada. Existirá uma segunda edição de cassetes, com certeza. Quanto à edição em vinil, só mesmo via crowdfunding, pois ainda não tenho capital para isso. Tenho vendido CDs todos os dias para todo o mundo – ainda hoje enviei um para os Estados Unidos e outro para Espanha. Enviei já para toda a Europa, Austrália, Canadá… As pessoas têm aderido. Tenho recebido várias mensagens de apoio e feedback positivo, o que até é algo invulgar neste género. Noto que as pessoas estão muito curiosas em relação a “Ode”. Por norma, tenho uma filosofia própria de ver as coisas. A partir do momento em que lancei o disco, passou a ser mais das pessoas do que meu. Foi meu durante o processo, mas depois disso, é das pessoas. Mesmo que exprima visões pessoais, é delas. Não faço planos para o futuro, as coisas acontecerão à medida que forem acontecendo, deixo-as fluir. O que mais importa é o disco, que é pessoal. Há muita gente agradada com ele, logo, óptimo. Em relação a outro futuro, o futuro de tocar ao vivo, é outra questão. Já ando nisto há 15 anos e já tive propostas e recusei, porque não sou muito um tipo de palco. Gosto do estúdio, de criar bandas-sonoras. Não vou dizer que daqui a dois anos ou amanhã não toque ao vivo, mas não vejo isso acontecer.»

“Ode” está disponível no Bandcamp em formato CD.