Em 2020, e ainda com um curta carreira, será Gaerea um hype ou uma certeza? Gaerea: hype ou certeza?
Foto: Catarina Rocha

Para percebermos a diferença de como as bandas se difundiam antes e agora não será preciso recuarmos 50 ou 100 anos, basta irmos até 1995 para se delinear contrastes e semelhanças.

A maior diferença passa pela existência da Internet e das suas plataformas, como Bandcamp e Soundcloud, onde qualquer músico / banda tem a oportunidade de expor o seu trabalho, criações que, hoje em dia, também já não são obrigatoriamente executadas num estúdio profissional – um bom computador, uma boa placa de som e um software razoável já tratam do assunto no quarto onde se dorme. Mais: enquanto antigamente reinava o tape trading por correio ou de mão em mão e as cartas demoravam semanas a chegar ao seu destino, hoje podemos espalhar as nossas demos por centenas de e-mails e contactar editoras / promotoras à distância de um clique, quer o destinatário esteja em Lisboa ou em Tóquio.

Quanto às semelhanças, essas ainda são algumas. Como se costuma dizer, o não é sempre garantido e perguntar ainda não paga imposto; por isso, não é por conseguirmos enviar 100 e-mails que vamos ter resposta positiva ou resposta sequer. Aliás, se há 30 anos nos queixávamos por não obtermos tudo o queríamos ou não sabermos de tudo o que havia e acontecia – sem esquecer que ouvíamos o mesmo CD horas a fio por termos poucos –, agora queixamo-nos da inundação diária de projectos e lançamentos – quantidade nem sempre é qualidade. As horas na estrada, com noites passadas no banco de trás de uma carrinha de nove lugares e sem nunca se saber se vamos regressar com menos dinheiro do que aquele com que se iniciou a viagem, também ainda são uma realidade, mesmo que um hostel em 2020 esteja muitas vezes ao alcance de qualquer orçamento em contraste com as pensões nos anos 1990.

Estas diferenças e parecenças não só definem duas gerações como também duas bandas: enquanto os Moonspell passaram pelas grandes dificuldades e demoras dos anos 1990, os Gaerea puderam usar de toda a tecnologia actual. Épocas à parte, será que a sorte também tem o seu quinhão nisto tudo? Claro que sim, mas, recorrendo mais uma vez à sabedoria popular, nada se concretiza sem esforço e dedicação.

Não podemos afirmar, pelo menos quanto a padrinhos, que os Gaerea tenham estado no lugar certo e à hora certa quando em 2016 lançaram o primeiro EP homónimo pela desconhecida Everlasting Spew Records. Quando o primeiro single começou a ser espalhado pela imprensa, ninguém sabia ao certo se eram portugueses ou não, ninguém, na generalidade, sabia quem eram os músicos sequer. Arrogância? Estratégia? Medo do estigma de se ser português? Tentativa de, deste lado, podermos imaginar que se tratava de uma banda polaca ou alemã, podendo originar-se assim mais ímpeto? A verdura desses primeiros tempos amadureceu e deu resultados. O EP foi bem-recebido e o primeiro LP “Unsettling Whispers” foi lançado em 2018 pela emergente Transcending Obscurity Records, editora sediada na Índia.

Sucederam-se digressões (primeiro pela Europa, mais tarde pela Ásia) e as primeiras grandes entrevistas. Porém, nada disto se deveu apenas à música. A imagem é fulcral, é o primeiro contacto. Verdade seja dita: uns Cradle of Filth sem o semblante macabro ou os Mayhem sem Dead a cortar-se em palco talvez não teriam tido tanta exposição no final do século passado. Com um black metal contemporâneo que explora o existencialismo e a observação da actualidade, os Gaerea usaram a imagética de forma exímia. Não é original (Mgła, Blaze of Perdition, Lifelover e Vanhelga já o faziam esporadicamente antes do aparecimento de Gaerea), mas é convincente, irresistível, envolvente e intrigante. Das fotos passou-se aos concertos e começou o falatório: em palco surgiam homens encapuçados comandados por um frontman que executa movimentos maníacos, uma expressão de loucura, agonia e ansiedade.

Em palco surgiam homens encapuçados comandados por um frontman que executa movimentos maníacos, uma expressão de loucura, agonia e ansiedade.

A capa do livro estava assim julgada, mas é o conteúdo que tem de ditar a emancipação. O black metal mudou desde, pelo menos, 2010. Os riffs directos e crus deram origem a uma densidade atmosférica, melancólica, melódica e introspectiva, e as temáticas simplistas da anti-religião, morte e destruição total deram lugar à reunião com a natureza humana em tons que buscam mais sabedoria e salvação. Nesta evolução criativa e intelectual encontramos bandas como Blaze of Perdition, Imperium Dekadenz, Harakiri for the Sky, Karg, Uada ou Gaerea. E o novo álbum dos portugueses, “Limbo” (com lançamento a 24 de Julho de 2020 pela Season of Mist), atesta tudo isto: black metal contemporâneo, melancolia exacerbada, angústia e prisão que têm de dar espaço à libertação, observação do mundo e iconoclastia algo irónica.

A resposta ao título poderá ser ambígua, não se chegando estritamente a um dos dois extremos, mas podemos definir uma linha comum entre o hype e a certeza no caso de Gaerea. Enquanto a imagem gerou hype, a música começa a firmar certeza. Fortis fortuna adiuvat. A sorte favorece os audazes. Mas não só e apenas. Há, por certo, quem tenha testemunhado todos os passos de Gaerea desde o início, e essas pessoas poderão apontar irredutibilidade como elogio. O plano foi traçado e nada aconteceu ao acaso. Sem qualquer desprimor pelo trabalho efectuado num underground composto por bandas, editoras e promotoras que vivem realidades diferentes, não foi por acaso que os Moonspell passaram pela Century Media Records e pela Napalm Records, percorrendo já vários continentes, nem que os Sinistro quebraram a barreira da língua e já saíram de Portugal inúmeras vezes com discos lançados pela Season of Mist, ou mesmo Besta que lançaram “Eterno Rancor” (2019) pela Lifeforce Records, editora que é, no mínimo, preponderante em solo germânico. E quem fala em contratos discográficos também pode falar em estrada e reconhecimento: Serrabulho e Analepsy são outros dois bons exemplos do que melhor se faz em Portugal com possibilidade de exposição internacional.

Chegados a 2020 e com apenas 4-5 anos de existência, os Gaerea lançam o segundo álbum através de uma Season of Mist que é sinónimo de excelência. Gaerea é uma realidade, isso é garantido, mas a certeza ainda é jovem – essa será confirmada nos anos vindouros: tudo será ditado pela evolução imagética e conceptual, pela destreza de se estar na estrada e por uma mentalidade criativa e de desenvolvimento pessoal que não poderá refastelar-se à sombra dos ganhos do presente. O hype é efémero, obtendo-se muitas vezes sem esforço, mas a certeza é uma empreitada que parte de dentro e que terá de ganhar o respeito do mundo exterior ao nosso pensamento. O caminho está a ser feito.