«Aliar o conhecimento técnico da música a uma nova abordagem composicional é um desafio que não está ao alcance de todos.» Dies Irae. Uma...

«Aliar o conhecimento técnico da música a uma nova abordagem composicional é um desafio que não está ao alcance de todos.»

Dies Irae. Uma expressão que, provavelmente, uma boa parte dos fãs de metal reconhece. São inúmeros os exemplos de bandas onde podemos identificar de algum modo a utilização do Dies Irae. Porém, pouco se aborda a questão essencialmente musical: quais as razões para que seja associada aos mortos e tão usada também no metal? Vamos por partes.

Robert Chase, no livro “Dies Irae: A Guide To Requiem Music” (2003), mostra-nos a longa viagem da Missa de Requiem (Missa dos Defuntos) desde a Idade Média à actualidade. Durante essa viagem, há um lugar especial para uma melodia e um texto: o Dies Irae (Dia de Ira). Trata-se de um texto em Latim na forma de Sequência habitualmente atribuída ao monge franciscano Tomás de Celano (1185-1260). Porém, a sua autoria tem sido questionada devido à descoberta de uma versão anterior ao Séc. XII. O texto divide-se em dezanove estrofes, cada uma com três versos, com excepção da penúltima estrofe, que tem quatro versos, e da última, que tem dois versos.

O Dies Irae começa então por ser um texto ao qual se juntará melodia, porém, ao contrário de diversos textos de cantos gregorianos que têm diversas versões musicais, o Dies Irae parece ter apenas uma. Essa melodia original, o Cantus Firmus do Dies Irae, é habitualmente atribuída a Adão de São Vítor, Precentor da escola de Notre Dame no Séc. XII (uma espécie de “mestre do coro”, digamos assim). O texto integral encontra-se dividido em seis linhas melódicas principais, sendo a primeira subdividida em três frases melódicas. No Séc. XIV o Dies Irae é introduzido nos rituais fúnebres da liturgia Romana e é oficialmente incorporado no Missal Romano em 1585 pelo Papa Paulo VI. Inicialmente cantada em canto gregoriano, após a versão polifónica de Antoine Brumel em 1516, outros compositores lhe sucederam com outras obras polifónicas incorporando a melodia original do Dies Irae. Por fim, o texto é removido da liturgia pelo Concílio Vaticano II no Séc. XX.

Ao longo dos séculos, é o início da primeira frase que tem sido citada, parafraseada, elaborada e variada, em contextos litúrgicos e não litúrgicos: “Dies irae, dies illa / Solvet sæculum in favilla, / Teste David cum Sibylla” contém um motivo musical amplamente utilizado e reconhecido. Esse motivo do Dies Irae pode ser encontrado em Missas de Requiem ou em obras de paráfrase dentro da chamada “música clássica” (designe-se mais correctamente de Música Erudita) por compositores como Franz Liszt (Totentanz, 1849), Hector Berlioz (Symphonie Fantastique op. 14, 1830), Camille Saint-Saëns (Danse Macabre op. 40), George Crumb (Black Angels, 1971), Arvo Pärt (Miserere, 1989) ou Krzysztof Penderecki (Dies Irae – Auschwitz Oratorium, 1967), no Cinema em filmes como Obsession (1975), The Seventh Seal (1957) e Nightmare Before Christmas (1993), e até na indústria dos Videojogos.

No metal, há três tipos de utilização de algo com o nome “Dies Irae”. Em primeiro lugar, observamos exemplos onde se encontra a temática “Dies Irae” mas que não recorre nem ao texto de Tomás de Celano nem ao motivo de Adão de São Vítor, como Believer no álbum “Sanity Obscure” (1990), ou Bathory no álbum “Blood Fire Death” (1988), ambas com temas intitulados “Dies Irae”, Dissection em “Starless Aeon” do álbum “Reinkaos” (2006), Helium Vola no EP “In lichter Farbe steht der Wald” (2004), ou Symphony X em “A Fool’s Paradise” do álbum “V: The New Mythology Suite” (2000).

Em segundo lugar, encontramos diversos exemplos de bandas que fazem “covers” de Missas de Requiem, missas essas que utilizam o texto mas não o motivo do Cantus Firmus original. São os casos de Epica e Therion, com covers da “Messa da Requiem” de Guiseppe Verdi, ou de Dark Moor, do “Requiem em Ré Menor” K. 626 de W. A. Mozart. Nestes casos as bandas estão “apenas” a executar uma versão metaleira de duas grandes obras da história da música sem que haja propriamente um significativo trabalho de composição.

Em terceiro lugar, este muito mais interessante, bandas que citam a referida primeira frase da melodia do Dies Irae, ou até mesmo só o pequeno motivo mais reconhecido. Exemplos são Rotting Christ no álbum “The Heretics” (2019), Abigor em “Kingdom of Darkness” do álbum “Verwüstung – Invoke the Dark Age” (1994), Et Moriemur no álbum “Epigrammata” (2018) que, curiosamente, não cita o primeiro motivo mas sim o segundo que tem uma curva ascendente e de seguida desce, ou ainda Melvins no álbum “Nude With Boots” (2008) onde encontramos uma citação bastante literal. Em alguns destes casos a melodia surge com o texto, noutros não.

Quais serão, então, os motivos para que o Dies Irae seja tão relacionado com os mortos? A resposta mais óbvia é o texto, que fala de um dia de terror, de morte, de justiça e castigo, temas negros e obscuros. Porém, estará a melodia subjugada ao texto, ou conterá elementos específicos que ajudarão a uma representação fidedigna dos mesmos temas? Vamos a uma análise onde opto por manter alguns termos técnicos, precisamente porque saber o nome das coisas é um bom princípio para o conhecimento. A melodia começa com um ornato inferior de meio tom, o qual em parte se repete incompleto transposto, dando um aspecto sequencial ao início da melodia. Está escrito no Modo Dórico, com uns laivos de Hipodórico, o que lhe dá uma sonoridade típica de um modo menor sem sensível e com uma modificação na sexta nota. Quanto ao contorno melódico, não começa na nota principal do Modo (a Finalis, Ré), característica que se repete a cada verso, e o sentido é quase sempre tendencialmente descendente. Os graus conjuntos alternam com saltos maioritariamente de terceira. Em suma, o motivo principal vai-se repetindo algumas vezes e alternado com material diferente. A melodia do Dies Irae tem, assim, dois ingredientes principais de um bom motivo: repetição, mesmo que sequencial, e contraste, aliados a uma sonoridade menor, um recorrente ornato inferior de meio tom e um sentido predominantemente descendente. Talvez sejam estas as características que deram a esta melodia uma tão eficaz relação com o mundo dos mortos e que a fazem sobreviver para lá do texto, admiravelmente, ainda nos dias de hoje.

«A melodia do Dies Irae tem características intrinsecamente pesadas e o metal vai muito para além de apenas adaptar temas aos timbres da música pesada.»

Das três possibilidades de utilização do Dies Irae – só o tema, só o texto sem a melodia, só a melodia (com ou sem o texto) – é a terceira que merece mais aplausos. Aliar o conhecimento técnico da música a uma nova abordagem composicional é um desafio que não está ao alcance de todos. É, aliás, esse um dos elementos distintivos de qualidade quando as bandas de metal tentam pegar em obras ou temas do repertório Erudito. Enquanto uns se limitam a realizar meras transcrições de uns instrumentos para outros, ou seja, tocar com guitarras, baixo e bateria o que seria tocado por uma orquestra (genericamente falando, claro), outros lançam-se num desafio criativo mais exigente e trabalham o material de modo a que se reconheça a fonte mas se verifique também a mestria composicional da banda. Assistimos a isso em outros exemplos além do Dies Irae, como Evanescence em “Lacrimosa”, ou Tarja Turunen em “Ite, Missa Est” e “I Walk Alone” do seu álbum de estreia a solo “My Winter Storm” (2007), que fazem paráfrases muito bem conseguidas do Lacrimosa e do Introitus da Missa de Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart, respectivamente, ou ainda The Foreshadowing the trabalham com enorme qualidade, especialmente no que à Forma diz respeito, sobre o tema “The Rains of Castamere” da aclamada série Game of Thrones.

É, portanto, este o desafio que lanço ao leitor: deixe-se encantar com a arte composicional de uma banda quando utiliza material do repertório Erudito (e não só) sem se deixar apenas levar por “fogo de artifício” que de composição pouco ou nada tem. A melodia do Dies Irae tem características intrinsecamente pesadas e o metal vai muito para além de apenas adaptar temas aos timbres da música pesada.

David Miguel é compositor, investigador e professor de composição e análise musical.