Repto para quem vai ouvir “Utgard”: os Enslaved não sabem fazer música má.

Editora: Nuclear Blast
Data de lançamento: 02.10.2020
Género: black/viking/prog metal
Nota: 4.5/5

Repto para quem vai ouvir “Utgard”: os Enslaved não sabem fazer música má.

Muitas vezes esquecemos, ou não nos lembramos, que Enslaved vem daquela segunda vaga de black metal fomentada na Noruega nos primeiros cinco anos da década de 1990, e é possível apresentar uma sugestão para justificar tal suposição: os Enslaved, para além de nunca se terem envolvido activamente no fogo e na morte (por mais que desejassem erradicar o cristianismo de solo escandinavo), cedo optaram por explorar a sua criatividade musical indo à procura de novos sons e abordagens que destoavam do black metal feroz e directo de bandas como Mayhem, Darkthrone ou Gorgoroth. Todavia, não estavam sozinhos e nomes como Emperor e Satyricon também ansiavam por dar uma nova roupagem sónica ao metal extremo dos seu país. É assim, através dessa perseverança, que brota a corrente progressiva (ou avant-garde no caso de Arcturus) no panorama black metal.

Cerca de 30 anos depois, os Enslaved continuam a surpreender. Mesmo que tenham encontrado uma fórmula e uma assinatura (a produção, a distorção e a forma de fazer riffs de Ivar Bjørnson, e o berro demoníaco de Grutle Kjellson não enganam), não se pode dizer que “RIITIIR” (2012) seja igual a “Vertebrae” (2008) e muito menos que o novo “Utgard” seja uma continuação de “E”.

Com uma abordagem mais ampla e menos complexa daquela apresentada em “E”, isto pode, e deve, relacionar-se ao conceito por detrás de “Utgard”, já que trata do domínio dos sonhos, onde vivem os gigantes e os deuses não têm poder. Porém, essa amplitude e libertação gera uma multitude de riffs imersivos (“Homebound”) que fabricam em primeira linha toda uma atmosfera envolvente e atraente, um apetrecho sedutor para entrarmos no reino do subconsciente.

Depois de um cântico nórdico na inaugural “Fires in the Dark”, os noruegueses começam realmente a fornecer evidências de que querem trazer o conceito lírico e intelectual à montra da música com “Jettegryta” – muito mais do que apenas mitologia, chegando-se mesmo aos campos da psicologia, temas como este projectam sensações abismais, tudo sempre entre picos e vales, uma montanha-russa oleada e insana que prova quão bons são os Enslaved a construírem paisagens através de som.

E porque temos de justificar o porquê de a banda continuar a surpreender, a paixão que têm pelo rock psicadélico é inequívoco através dos teclados, mas especialmente através da electrónica inicial de “Urjotun”, um tema nada comum no espectro dos Enslaved, que possui uma orientação post-punk e que visa homenagear grupos como Kraftwerk e Hawkwind. Mais à frente, em “Storms of Utgard”, há ainda espaço e tempo para um solo à Pink Floyd, o que, para os mais atentos, é algo menos raro em álbuns de Enslaved.

Ao longo de 44 minutos, os nórdicos demonstram ter capacidade para criarem músicas de cariz progressivo em 4-6 minutos, em que as estruturas são distintas entre si, seja através de segmentos mais calmos com guitarra acústica ou através de robustas avalanches de som que nos soterram sem aviso prévio, originando assim uma experiência de diferentes sensações em poucos, mas intensos, minutos.

No meio de todo um turbilhão sensorial, que é pesado e tortuoso, há também uma bonita dicotomia entre growls e voz limpa, sendo que os berros estão relacionados ao black metal e a limpeza vocal ao metal melódico e progressivo, algo que não se descobre apenas nas vozes mas também na forma como as músicas soam em cada parte – isto é, enquanto a ala mais extrema é coesa, apertada e veloz, as partes melodiosas são mais abertas e amigáveis, e talvez seja nesse campo que os Enslaved melhor mostram as suas habilidades técnicas, porque têm obrigatoriamente mais espaço para se dedicarem ao detalhe.

Em suma, por mais que se possa apontar “Utgard” como um disco menos complexo, a verdade é que está repleto de ambientes de fundo suportados por teclados e orquestrações mesmo que nem sempre sejam audíveis a ouvido nu, mas o que é certo é que estão lá a dar um corpo muito musculado a um conjunto de temas grandiosamente atmosféricos. Repto final para quem vai ouvir “Utgard”: os Enslaved não sabem fazer música má.