Um puzzle que, quando resolvido, nos abre uma porta para outra dimensão ou plano de existência.

Editora: Debemur Morti Productions
Data de lançamento: 19.02.2021
Género: avant-garde/industrial/prog black metal
Nota: 4.5/5

Um puzzle que, quando resolvido, nos abre uma porta para outra dimensão ou plano de existência.

Geralmente, e de forma abstrata, quando ouvimos dizer ‘heavy metal’ surgem duas questões mais imediatas: qual o subgénero de heavy metal e qual o país de origem? Ambas servem de bússola pessoal, pois, consoante o subgénero, associamos pontos de referência (de forma simplificada, o black metal é descomprometido, o grindcore é incessante, o death metal é cavernoso, o power metal é melódico, etc.) e, consoante a proveniência da banda, associamos-lhe certas nuances que servem para diferenciar sonoridades dentro do mesmo subgénero (death metal sueco vs. death metal americano, thrash alemão vs. thrash americano, black metal norueguês vs. black metal polaco, etc.).

No entanto, embora mais raramente, basta-nos saber que determinada banda vem de um determinado lugar para que as afirmações do parágrafo anterior percam efeito. É o caso da Austrália, que, ao longo das décadas, nos ofereceu projectos simplesmente únicos dentro da enorme família do metal, alguns dos quais ainda sem par actualmente (com Sadistik Exekution e Ne Obliviscaris à cabeça) e, até, alguns nomes globalmente reconhecidos, tal como Parkway Drive. Ah – e também é a terra dos The Amenta, um dos projectos mais singulares dentro do metal extremo mundial, oriundo lá de baixo.

Praticantes de metal avant-garde/progressivo com bases firmadas no death metal, black metal e industrial, os The Amenta são velhos conhecidos nossos, mas nunca sabemos o que esperar deles, tais são as disparidades entre cada disco da banda – por exemplo: se “Non” apostava numa tela de tons industriais, “Occasus” é um disco competentíssimo de blackened death metal. Assim, nunca contamos com linearidade da parte dos The Amenta, o que torna sempre as coisas um pouco mais interessantes. E por falar em interessantes, “Revelator” é um disco que tem a obrigação de fazer os ouvintes virarem a cabeça na sua direcção quando começa a ser reproduzido.

Tudo começa com a capa de “Revelator”, que ostenta um coração humano do qual sobressaem espinhos e no qual se encontra, no cimo, uma construção que aparenta ser a Torre de Babel rodeada por arame farpado – escrita esta crítica no dia de São Valentim, sorrimos com a curiosa coincidência. Curiosa porque foi criada pelo mago Metastazis (artista visual responsável por capas de bandas como Paradise Lost, Watain, Alcest, Behemoth, Orphaned Land e Morbid Angel, entre muitas outras), mas em nada uma coincidência, já que o artista tem um fetiche com o coração humano, abordado anteriormente noutras capas. E o que tem a ver um coração humano com a Torre de Babel? Tudo, segundo os The Amenta, que nos revelam, tema após tema, as peças do puzzle que acabam por nos explicar a portada deste novo trabalho. É por isso que, para os críticos profissionais, que fazem vida disto, a capa de um disco é importante, pois não só serve como cartão de apresentação como, muitas vezes, está intimamente associada ao conteúdo que reveste. Assim, julga-se a música e a capa – no mínimo, é justo para a banda. Neste caso, ambas são a mesma coisa.

Uma vez mais, o miolo de “Revelator” é um quebra-cabeças. Não um do tipo Cubo de Rubik, antes uma Caixa de Lemarchand – um puzzle que, quando resolvido, nos abre uma porta para outra dimensão ou plano de existência. Cada tema é um movimento que fazemos de livre vontade e que, gradualmente, nos aproxima mais dessa porta. Resta dizer que o que está do outro lado de uma porta aberta por uma Caixa de Lemarchand nunca é particularmente agradável. A palavra-chave em “Revelator” é comunicação, no sentido do acto de comunicar e de tudo o que está associado a isso, particularmente trocadilhos e duplos sentidos. Uma deliciosa dor de cabeça, mas, ainda assim, uma dor de cabeça.

A sensação de desconforto inicia com “An Epoch Ellipsis” (trocadilho com “An apocalypse”), uma faixa com a abordagem inicial já característica dos The Amenta: extremamente rápida, dissonante, agressiva e muito técnica. Contudo, nela também podemos constatar os esforços de experimentação vocal de Cain Cressall, algo invulgares ao longo da carreira dos The Amenta, mas que assentam perfeitamente. Por seu lado, os sintetizadores inseridos por Timothy Pope dão ao tema primário uma aura industrial inorgânica que já conhecemos de discos anteriores. Decidimos dar uma vista de olhos às letras do primeiro tema e quase somos acometidos de uma crise de nervos. Tanto porque não fazem qualquer sentido como porque fazem todo o sentido do mundo.

Apenas na primeira música contamos mais de 17 trocadilhos, muitos associados à comunicação, tal como “Babel on” (que confirma a nossa teoria sobre a capa). Durante os seus quase 46 minutos de duração, “Revelator” invoca temas tão díspares como Hegelianismo, neurolinguagem, probabilidade matemática, literatura, rotas fonológicas, morfemas, idioglossia, criptofonia… A lista de termos de comunicação abordados daria para um caso de estudo. Este passo em frente dos The Amenta é colossal, não apenas em relação aos seus trabalhos anteriores mas também a uma nova forma de conceito lírico. Fosse um disco julgado apenas pelas suas letras e cinco valores não chegariam para pontuar “Revelator”. Felizmente, julgamo-lo pelas letras, pela música e pela capa. Todas as três agradam.

A seguinte “Sere Money” (mais um trocadilho, desta feita com “cerimony”) inicia com o que poderia ser um riff lento de black ‘n roll e mais dissonância, tudo impecavelmente desempenhado em termos instrumentais. Os traços industriais aparecem de forma mais pronunciada e, no final, ficamos com a sensação de que os The Amenta nos pintam uma paisagem com notas musicais. Um dedilhado limpo e clássico inicia “Silent Twins”, musical, lírico e ambientalmente um dos temas mais sinistros deste trabalho, prova de que não é necessário ser kvlt para assustar um ouvinte. Claro que o conceito por detrás da música consegue criar esse ambiente de horror, mas compor uma banda-sonora que exprima musicalmente esse pavor não é coisa pouca.

“Psoriastasis” regressa ao metal extremo e caótico, sempre debruçado à janela da experimentação. Qualquer comparação com os Emperor tardios será compreensível. Com os seus 8:14 minutos, “Twined Towers” é mais um ecossistema construído de propósito para que Cain experimente com a voz – a toada ambiental e serena, a invocar a tempos Dead Can Dance e Tangerine Dream, é mais tarde trocada pela agressividade metálica e industrial, quase marcial, com que o tema termina. “Parasight Lost” vem a seguir e continua o trabalho de riffs black metal de vanguarda pontuado por death metal moderno e cáustico – a sensação de hipotermia provocada pelos toques industriais é omnipresente.

“Wonderlost” mistura agilmente música industrial, ambiental e noise para criar mais uma paisagem sonora distópica em menos de três minutos totalmente intrumentais. A penúltima “Overpast” carrega novamente no pedal do metal, dá umas braçadas vigorosas no oceano dos Strapping Young Lad, dá à costa na praia do death metal e refugia-se na densa vegetação do metal progressivo, em que influências como Meshuggah não serão de estranhar. Por fim, “Parse Over” continua o caminho iniciado pelo tema anterior, ainda que dedique mais tempo aos momentos extremos. E aos momentos experimentais. E aos industriais. E aos ambientais. Tudo no mesmo tema. Impressiona.

Deixada a cargo de Maor Applebaum, que dispensa apresentações, a produção e masterização de “Revelator” são de uma estranheza gritante, pois, embora estejamos habituados a outros trabalhos em que Maor saiu da sua zona de conforto, não é fácil lapidar uma obra tão complexa como esta. O resultado final é intocável, com as doses certas de ruído, caos, limpidez e pormenor perfeitamente equilibradas, sem espaços mortos ou em branco – porque a natureza abomina o vácuo, “Revelator” preenche-o inteiramente de forma natural, sendo por isso sério candidato a um dos melhores discos de 2021. Existem 66 espécies venenosas na Austrália. Ou 67, se contarem com os The Amenta.