De Godzilla a Gojira, de 1996 a 2021. Retrospectiva: Gojira

Um dos exemplos vivos de técnica e durabilidade, em tempos denominada de Godzilla, a banda passou rapidamente de uma referência dos rumores do então underground do death metal progressivo para uma das bandas mais valorizadas da indústria. Os Godzilla assim o foram até 2001, um nome que perdurou durante cinco anos numa formação que se iniciou pelos irmãos Duplantier. Logo, o duo tornou-se num quarteto com Joe e Mario Duplantier, Christian Andreu e Alexandre Cornillon – todos amigos ou com relações entre uns e outros.

Assim, o quarteto de Ondres, França, solidificou o seu som com rapidez, apesar da sua juventude. Em 1996 e 1997, lançam “Victim” e “Possessed” com fortes trejeitos de death metal progressivo, quase mórbido e caótico, mas com traços predominantes de thrash metal. Apesar das intenções do grupo, a realidade é que os jovens ainda não passavam disso mesmo no mundo da música. A intenção estava lá, mas faltava qualquer coisa que só surgiu com a primeira digressão nacional que, apesar de curta, deu a conhecer os Godzilla a um público fundamentalmente underground e rebelde dos finais dos 1990s, que precisava de um escape para a sua mudança cultural e social. Pelo seu talento, mas também fruto dos tempos, os Godzilla tiveram um sucesso bastante interessante, prontificando-se a apoiarem bandas como Cannibal Corpse e Immortal, o que culminou no lançamento de “Saturate” (1999), quando Labadie já substituíra Cornillon no quarteto que se mantém até hoje. Com “Saturate”, a sonoridade soa mais thrash metal, adaptando-se a uma realidade mais contemporânea.

O nome Godzilla viria a dar-lhes problemas legais, o que os levou à alteração para Gojira. Sob este nome, sai “Terra Incognita”, um longa-duração intenso com muitas características primitivas ao seu percurso, mas com um grande acrescento de thrash e groove metal, apesar de ser fundamentalmente um álbum de death metal progressivo. O disco de estreia não é de todo o favorito dos fãs, sendo claramente o início de um caminho fruto da sua juventude, mas os aperitivos que eram dados eram saborosos e satisfaziam quem os devorava. Entre produção independente e assinatura de contratos com editoras discográficas, o caminho fez-se para sair para as lojas o segundo álbum “The Link”.

Este é mais maduro, técnico e evoluído, também graças à produção e local de gravação próprio, o que facilitou, e muito, a execução do disco. Este segundo álbum agradou mais a gregos e a troianos, sendo fundamentalmente um álbum superior qualitativamente, com um som mais exploratório e polivalente, dando ares dos Gojira da actualidade. É classificado por muitos críticos como um dos lançamentos mais puros e crus do quarteto – alguns até o vêem como primitivo e experimental, com uma toada técnica mais apurada e desligada do death metal, o que por vezes pode ser uma vantagem.

Os franceses têm sempre preocupação pelo conceito do álbum – é algo que sempre os atraiu na composição. “The Link” é uma evolução óbvia da estreia, conseguindo atribuir um valor maior ao conceito com a sua sonoridade complexa mas também assoberbada de ideias e de vontade para mostrar talento. Ainda assim, a faixa homónima e “Death to Me” são duas grandes malhas que iniciam o álbum e que poderiam fazer parte do repertório dos Gojira actuais.

Após quatro anos da estreia discográfica, o terceiro álbum é o grande clássico dos franceses, que, curiosamente, surge pouco tempo após esse primeiro lançamento, revelando um potencial de evolução tremendo. Após o segundo “The Link”, o grupo logo se tornou famoso pelas suas digressões poderosas e precisas, o que ajudou no encaixe financeiro do quarteto para preparar aquele que viria a ser o melhor disco da banda e que lhes viria a dar exposição mundial. “From Mars to Sirius” possui um conceito complexo e rico baseado em romances utópicos e místicos. A ideia fundamental foca-se nas diferenças humanas entre homens e mulheres, e nas consequências dessas diferenças. Desta feita, a narrativa é extrapolada como nunca antes, abordando os temas da fatalidade do planeta, assuntos ambientais e a morte. Tecnicamente, o álbum é exímio, assentando numa dinâmica intensiva entre progressivo, death, groove e thrash metal, com um enorme suporte nas melodias fortemente atmosféricas, que incutem uma evolução na sonoridade do álbum. Sendo um disco conceptual, destacar faixas seria injusto, mas é inegável a influência de “Ocean Planet”, “Backbone”, “Where Dragons Dwell”, “Flying Whales” e “World to Come” para a expansão qualitativa deste portentoso lançamento que combina o pesado e o potente com o atmosférico e o progressivo, resultando num dos lançamentos mais ricos do metal progressivo.

Com “From Mars to Sirius”, os Gojira deixaram de ser uma surpresa para se tornarem uma realidade contundente num metal em mudança. O ano de 2005 viu muitas bandas a surgirem e algumas outras a ressurgirem. Os Gojira acrescentaram uma camada de complexidade intensa com uma sonoridade evoluída que mistura death/groove/thrash metal com aspectos atmosféricos e trabalhados, tudo fortemente apoiado por um conceito amadurecido que demonstra a capacidade evolutiva de uma banda que, em tempos, era de garagem com uma formação jovem e rebelde. Os Gojira eram sinónimo de sucesso e, com esse espírito, partiram para a produção e composição do intenso “The Way of All Flesh” (2008).

Este álbum é essencialmente o degrau seguinte para o estrelato e crescimento do grupo francês. O quarto longa-duração está repleto de texturas e nuances, mantendo a polivalência sonora sobretudo criada no antecessor. É um dos lançamentos mais duros e polémicos da discografia, discutindo o tema da morte com um à-vontade bizarro. O álbum puramente conceptual que fora “From Mars to Sirius” parece não ser a tendência neste quarto disco, apesar de o conceito dominar as doze faixas. Não é um trabalho tão consistente como o anterior, mas explana polivalência de forma mais intensa, incluindo-se algum metal industrial sobretudo na bateria. “Art of Dying”, “Adoration of None”, “Vacuity”, “Esoteric Surgery” e a faixa homónima são absolutos clássicos de Gojira, representando, e bem, a sua evolução estilística. A fama também se repercute nas colaborações, com a participação de Randy Blythe (Lamb Of God) em “Adoration of None”. “The Way of All Flesh” é um álbum de qualidade que obteve óptimas críticas, mas também alguns dissabores, sobretudo devido à inconstância da sonoridade. Seja como for, é claramente uma das referências e, para muitos, o segundo melhor tento dos Gojira, solidificando quase dez anos de lançamentos.

Agora, tendo a solidificação do seu trabalho sido efectuada com dois clássicos da indústria, os Gojira entram na nova década com uma reputação engrandecida e trabalhada, impondo-se como um dos monstros do género e da música actual. Tendo já criado uma base de fãs muito fiel aos seus concertos e trabalhos, rapidamente obtiveram um estatuto principal junto de bandas mais reputadas, estando lado-a-lado com tais nomes. A nova década trouxe novidades no campo artístico, com uns Gojira orgulhosos da sua música mas também aptos para a mudar com a adição de elementos mais ambientais e sofisticados. Para tal contribuíram os álbuns “L’Enfant Sauvage” (2012) e “Magma” (2016), com que vimos os franceses a experimentarem os vocais limpos de forma quase íntegra.

A filiação a produtoras de renome mundial e a um novo estúdio acabou por criar um espaço de inovação propício para se conseguir modificar mais uma vez a sonoridade, agora com alguns elementos mais estéticos e melódicos, conseguindo escapar a uma sonoridade mais death e acérrima em gostos. É inegável que os Gojira se transformaram nesta nova década, quase se podendo dizer que esta é uma terceira versão de um grupo já por si só muito delineado. Em “L’Enfant Sauvage”, com inspiração livre na obra de François Truffaut sobre um rapaz criado entre selvagens, a sonoridade é mais crua e primitiva, com uma produção não tão sofisticada e apurada, mas propositadamente agressiva. No entanto, obtém-se um quê de mudança na inclusão de pormenores mais ambientais. Este quinto álbum viria apenas a ser o percursor de um “Magma” mais virado para o metal progressivo técnico, não tão focado no gutural e mais acessível a outros ouvintes. O sexto álbum de originais é claramente um dos mais fortes candidatos a melhor álbum de metal progressivo da década, sendo que obteve uma recepção realmente intrincada e favorável, com elogios à polivalência refinada que a cada lançamento se quer melhorada.

Esta terceira versão – de uns Gojira tão death metal como atmosféricos e tão progressivos como sofisticados – obteve excelentes críticas e os seus concertos tornaram-se quase aditivos e sónicos, com uma forte inclusão de batidas e aspectos mais ritmados e pesados na sonoridade geral. Para tal, a produção dos concertos subiu de tom e tornou-se mais eclética graças a um trabalho iniciado em 2001.

Agora, em 2021, “Fortitude” é o próximo passo com data de lançamento a 30 de Abril. Depois de protagonizarem diversos festivais, concertos em nome próprio e de se terem tornado numa das grandes bandas do momento, a pandemia atacou em força em 2020, o que veio contribuir para um licenciamento estilístico muito diferente do típico Gojira. “Fortitude” pode ser a obra-prima do grupo, mas também pode ter um efeito reverso – só a sua audição poderá responder a estas dúvidas. A quarta versão de Gojira está aí à espreita.