No culto de Heilung: ossos humanos, rituais pagãos e exércitos ancestrais
Artigos 2 de Março, 2021 Metal Hammer
Como o metal abraçou os místicos do folclore pagão Heilung.
Caso precises de alguns ossos humanos, Kai Uwe Faust consegue dizer-te onde os arranjar. Em 2015, ele e os seus companheiros em Heilung decidiram que o álbum de estreia, “Ofnir”, beneficiaria com alguns sons de percussão únicos e imaginaram que restos de um esqueleto resolveriam o problema. Felizmente, Kai – co-vocalista e Líder Espiritual oficioso de Heilung – tinha alguns.
«Sou tatuador», diz Kai, com a sua voz a personificar a fria ameaça alemã. «Tenho contactos. Pessoas que não pagam…»
Deixa a frase no ar. Há um silêncio desconfortável. Depois ri e o feitiço é quebrado. «Não, vieram da universidade.»
Fica a ideia de que não é ilegal comprar ossos humanos na Dinamarca, a terra natal adoptada por Kai. Comprou-os quando o departamento médico se desfez deles a favor de moldes em plástico. «Tenho um crânio e alguns ossos», diz. «Na cultura cristã, quando morres, tens de ser enterrado e pronto. Noutras culturas, os crânios são refeitos em tambores sagrados ou os ossos são esculpidos como ornamentos. É a maneira de lidar com um dos aspectos mais importantes da vida: a morte.»
Por um lado, é uma resposta decepcionantemente mundana. Por outro lado… Bem, quantas bandas usam ossos do antebraço para baquetas e caveiras para percussão?
A resposta correcta é: Heilung. Ainda assim, inconcebivelmente, estes místicos do folclore pagão que chacoalham esqueletos e usam chifres tornaram-se o fenómeno mais improvável e único dos últimos anos.
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Christopher Juul, o produtor e multi-instrumentista de Heilung nascido na Dinamarca, compara a inesperada trajectória ascendente de sua banda a «uma fera que está a ficar cada vez maior. E tens de a alimentar com pedaços de carne cada vez maiores para a manter feliz e para evitar que te devore».
Christopher fundou Heilung com Kai e a co-vocalista norueguesa Maria Franz (sua companheira) em 2014. As expectativas naquela altura eram mínimas. «Achei que seria um pequeno nicho», diz Maria. «Na verdade, era apenas uma experiência a brincar com aquele material sombrio que o Kai criou.»
Essas experiências tornaram-se algo totalmente diferente. Heilung materializou-se na consciência colectiva do metal como um espírito, apesar de possuir poucas das características tradicionais de uma banda de metal. As actuações ao vivo não são concertos, mas rituais comunitários, completados com guerreiros, fogueiras e runas. Os dois álbuns que fizeram até agora, “Ofnir” de 2015 e “Futha” de 2019, pulsam com ritmos tribais que alteram a mente e exortações imperceptíveis a deuses longínquos – «história ampliada», como eles dizem. As canções soam como transmissões de outros planos (se Kai, que afirma viajar entre mundos, for digno de crédito, às vezes é verdade).
Neste plano em particular, está uma noite fria de Dezembro e conversamos através do Skype do Séc. XXI. Maria, Kai e Christopher estão sentados no estúdio de Heilung – os seus gorros e hoodies são significativamente menos hostis do que os chifres e as vestes que usam em palco. A eles junta-se ocasionalmente um pequeno cão preto que salta à frente da câmara. É Luna – meio poodle, um quarto pug, um quarto chihuahua. «É o nosso novo membro da banda», diz Maria.
As sementes de Heilung foram plantadas num lugar como este, com os primórdios a serem literalmente envolvidos por fumo. «Era no antigo estúdio», diz Kai. «O Christopher ainda fumava naquela altura. Abrias a porta e havia um nevoeiro de tabaco. E cerveja e pizza.»
Kai conheceu Christopher e Maria através das reconstituições Viking, nas quais os três estavam envolvidos. Mudou-se da Alemanha para a Dinamarca em 2010 para seguir a sua carreira como tatuador especializado em designs nórdicos. Cresceu numa família cristã devota, e depois abraçou o paganismo na adolescência.
Kai era um contador de histórias e poeta, e queria enviar as histórias e os poemas que lia para os amigos em casa. Fechou um acordo com Christopher: este gravaria as histórias e os poemas de Kai e colocar-los-ia em paisagens sonoras; em troca, Kai iria tatuá-lo (uma oferta que ainda não foi aceite). «Mas não foi satisfatório», diz Kai. «Houve um momento em que ele disse: ‘Será que não consegues cantar alguma coisa?’»
De início, Maria não estava envolvida, mas testemunhou em primeira mão. «Isto era algo diferente», diz. «Parecia demasiado – os gritos eram difíceis de ouvir. Era assustador, mas depois ultrapassei e fui atraída.»
Foi só quando Maria se tornou o terceiro raio crucial da roda que os Heilung começaram a tomar forma adequada. «Nunca foi: ‘Vamos sentar e fazer Heilung’», diz Christopher. «Foi: ‘Vamos fazer algo.’ E tornou-se uma coisa própria. A fera.»
A primeira vez que o mundo teve conhecimento de Heilung foi quando lançaram “Ofnir” em 2015. O álbum apresentava uma variedade de instrumentos incomuns, incluindo um sino ritualista hindu, tambores em pele de cabra e, claro, os ossos de Kai. A maioria dos sons que criaram foi captada à primeira. «Havia magia nisso», diz Christopher.
“Ofnir” causou sensação nos círculos das reconstituições, assim como entre as pessoas que conheciam Christopher e Maria das suas outras bandas – o trio tradicional de folk nórdico Songleikr e o mais progressivo Euzen. Alguns metaleiros também lá chegaram, conduzidos por Warduna, mas os sinais apontavam para o culto e nada mais.
Tudo isso mudou a 5 de Agosto de 2017, quando os Heilung deram o primeiro concerto, no festival holandês com temática medieval Castlefest. Inicialmente,Christopher resistiu à ideia de um concerto ao vivo de Heilung, argumentando que em palco nunca conseguiriam reproduzir completamente a experiência ritualista que almejavam. Mas ali, à frente de 10.000 pessoas, fizeram uma actuação, intitulada “Lifa” (“Vida”), que fora espectacularmente teatral e profundamente primitiva. «O que estávamos a tentar alcançar não era um concerto», diz Christopher. «Era um ritual.»
Christopher vai ao fundo do estúdio e regressa com um maço de páginas A3 que apresentam designs e bonecos – são os seus primeiros esboços para o espectáculo de palco. Demorou um ano a planear e alguns ensaios intensivos para se tornar realidade. «Algo foi colocado em movimento», diz. «Definitivamente, Heilung nasceu naquela noite.»
O Castlefest foi um ponto alto para Kai: era a primeira vez que se tinha apresentado em palco com qualquer banda. «Fui literalmente empurrado para ali, e outra coisa assumiu o controlo», diz. «Não me lembro de muito, a não ser que acabou num segundo.»
Também foi um ponto alto para Heilung. O espectáculo de “Lifa” foi lançado como álbum e vídeo. Até à data, foi visto cinco milhões de vezes no Youtube e mais de 25 milhões de pessoas viram o clip da música “Krigsgaldr”. Seguiu-se uma avalanche de vídeos com reacções, variando de admiração a perplexidade, partilhados por todos, desde metaleiros a fãs de hip hop.
«Há algo sobre a música tribal e o mundo dos ritmos ancestrais», diz Maria. «É um batimento cardíaco, e o batimento cardíaco é comum a cada ser humano. Fala às pessoas, independentemente da sua identidade ou cultura.»
Nos três anos após Castlefest, algo estranho aconteceu com a mais retro das bandas: os Heilung infiltraram-se na cultura popular. As suas canções foram fortemente destacadas num episódio-chave de “Vikings” e também participaram na banda-sonora de um trailer de “Game of Thrones”. «Todas as cenas de morte tinham a nossa música», diz Christopher com orgulho.
Também surgiram outras ofertas menos óbvias. Trabalharam com a companhia de jogos Ninja Theory em “Senua’s Saga: Hellblade II”, uma aventura de acção e fantasia negra. E depois aconteceu terem sido contactados por um realizador que queria usar a música da banda num anúncio de TV para uma colaboração entre a Adidas e o estilista de moda Alexander Wang.
«Pensámos: ‘O que raio Heilung tem a ver com sapatilhas’?», diz Maria. «Mas o realizador escreveu-nos a dizer que tinha feito um filme baseado nas imagens que tinha para o anúncio e sentiu que a nossa música o elevaria. Ficámos a sentir-nos melhor sobre aquilo.» (Permitiram que a sua música fosse usada no anúncio, embora sapatilhas de última geração à borla não tenham sido, tristemente, recebidas.)
Nem toda a gente os adora. Um crítico disse que “Ofnir” era cena mais chata que já tinha ouvido. «Ele disse: ‘Todo o álbum parece uma intro infinita de black metal’», diz Kai a rir. Outros criticaram por usarem peles de animais nos tambores e ossos como instrumentos. «’Deviam usar plástico, porque é melhor para os animais’», diz Christopher a revirar os olhos.
Às vezes, as preocupações do mundo real intrometem-se de uma maneira muito mais séria. Os Heilung não são os únicos a usar imagens pré-cristãs, como a roda solar pré-histórica. Tais símbolos também foram escolhidos pela extrema direita e grupos neonazis. A banda está compreensivelmente interessada em distanciar-se da mancha da supremacia branca.
«Não nos misturamos com a política moderna», diz Christopher bruscamente. «Tratamos de um tempo muito mais antigo. Heilung significa cura. Queremos aproximar as pessoas, não separá-las.»
Em Janeiro de 2020, depois de uma fã negra ter sido insultada racialmente por brancos num concerto de Heilung em Nova Iorque, a resposta da banda foi inequívoca: «Aparentemente, algumas pessoas compareceram ao nosso ritual com a ideia de que Heilung é apenas para brancos. Não é o caso. Heilung é para TODAS as pessoas… Quem tentar encaixar a banda numa agenda política de qualquer tipo, claramente não compreendeu o que é Heilung. Isso inclui, mas certamente não se limita, a supremacia branca. Não toleramos a exibição de divisão e ódio no público dos nossos rituais.»
Houve um efeito inesperado no crescimento do sucesso de Heilung. Deixaram de ser uma banda que não tinha intenção de tocar ao vivo para uma banda que se apresenta regularmente. Na última contagem, a comitiva de Heilung totalizava 24 pessoas, incluindo músicos, técnicos e guerreiros Viking. A ideia de tentarem carregar os seus instrumentos artesanais em aviões com malas de mão já era. Um dia, Christopher quer que tenham o seu próprio avião. «Com escudos nas laterais e chifres a saírem da janela, com o nosso caracol guerreiro atrás.»
Parte do sucesso de Heilung deve-se à sua singularidade como banda de metal – o que fazem está muito longe da grandiosa pantomina do género. Mas, por outro lado, fazem parte de uma teia mais ampla da cultura pagã que se estende não apenas para fora, para absorver programas de TV, filmes, livros e vidoejogos, mas também para dentro, seguindo um fio que percorre séculos e milénios de música, até à primeira batida primordial. Há um reconhecimento fundamental do que estão a fazer entre todas a gente que os ouve.
«As pessoas dizem: ‘Quem começou a cena pagã?’», diz Kai. «Foram os que viveram há mil anos. Todos nós fazemos parte de algo muito maior.»
Se quiseres uma ilustração de como Heilung é dedicado ao acto existencial de ser Heilung, aqui está uma. Uma partilha nas redes sociais mostrou-os a gravarem-se a si mesmos numa ponte de madeira no interior da Dinamarca. Queriam recriar o som de um exército em marcha. «Especificamente naquela ponte», diz Christopher. «Foi reconstruída exactamente como uma ponte da era Viking. Não tem pregos, apenas cavilhas. Estávamos do tipo: ‘Precisamos daquele som.’ Lanças a pisarem fortemente aquela ponte, botas pesadas a caminharem…»
Maria: «Contámos que precisávamos de atravessá-la mil vezes para conseguir o exército que queríamos.» E os Heilung fizeram a travessia mil vezes? Christopher pensa. «Bem, marchámos durante um bom bocado.»
Havia uma razão para a marcha: pode muito bem entrar no próximo álbum de Heilung. Ainda é cedo, mas os planos estão a fermentar para o sucessor de “Futha”, provisoriamente marcado para 2022. «Vai ser um monstro», diz Christopher. «Um álbum duplo? É muito provável. Certamente o maior que já fizemos.»
Pensar em grande não está limitado ao estúdio. Uma marca do lugar em que os Heilung estão é a digressão Outono/Inverno de 2021 que inclui um concerto na Brixton Academy de Londres, com capacidade para 5.000, bem como uma aparição no lendário Red Rocks Amphitheatre, no Colorado.
E já estão a pensar além disso. Querem dar concertos em salas sem restrições, para representarem com mais precisão o aspecto ritual das suas actuações. Planeiam criar o seu próprio festival, completado com um acampamento ao estilo Viking. Pretendem tocar ao ar livre em túmulos ou em florestas ou em monumentos de barcos de pedra. «Tenho o sonho tocar no Coliseu», diz Christopher. «Seria porreiro conquistar Roma para os Vikings.»
«Mas o lugar físico não é importante», diz Kai, sério por um momento. «É o lugar mental. Onde estamos e para onde trazemos as pessoas, isso pode ser em qualquer lugar.»
De momento, os Heilung estão presos no estúdio de Christopher. Podia ser pior. «Estar com estes gajos todos os dias nesta bolha é algo para o qual vale a pena acordar», diz.
O que 2021 trará, só os deuses sabem. A jornada dos Heilung demorou milénios para os trazer a este momento. «Mas acho que, de certa maneira, ainda estamos no início», diz Christopher. «Ainda estamos a descobrir o que é esta fera.»
Consultar artigo original em inglês.


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